Em tempos de avanço do coronavírus, a regra é clara: “fique em casa”. Mas como é possível contornar os impactos das mudanças no modelo de abastecimento e consumo, e ainda assim se alimentar bem?
Nas últimas semanas, chefs, cozinheiros, jornalistas, influenciadores, agricultores, organizações da sociedade civil e formadores de opinião foram ainda mais enfáticos nas mensagens de incentivo ao consumo de alimentos de proveniência local, produções artesanais e que valorizem a agricultura familiar. O avanço da pandemia do coronavírus pelo país e pelo mundo tem levantado uma série de preocupações também no ramo da alimentação, uma vez que a recomendação máxima de ficar em casa afeta diretamente o movimento dos estabelecimentos e, por consequência, a vida de profissionais do setor gastronômico, fornecedores, empresários e chefs de cozinha, assim como de suas famílias. Com restaurantes fechados, além de feiras e eventos cancelados, viu-se propagar como nunca os serviços de delivery, a compra de vouchers e de produtos artesanais e/ou provenientes do campo.
Agricultores familiares, inclusive, começam a sofrer alguns impactos decorrentes do Covid-19. As restrições relacionadas ao trânsito e o fechamento de comércios dificulta o acesso a mudas e a insumos agrícolas, por exemplo, além de impactar no escoamento de produtos agrícolas. Em Pescaria Brava/SC, o agricultor Antonio Augusto conta que a crise também exigiu mudanças na venda direta ao consumidor, como a abrangência do serviço de entrega e alterações no sistema de pagamento de cestas. Já quando o assunto é levar os produtos um pouco mais longe, a união faz a força, e os produtores agora optam por ratear os custos das viagens, a fim de evitar um deslocamento excessivo entre cidades e diminuir os custos com transporte, como conta Antonio, que também é integrante da Associação Slow Food do Brasil e uma das lideranças da Fortaleza Slow Food do Butiá do Litoral Catarinense.
É nesse mesmo clima de união e solidariedade que entidades governamentais e civis passaram a discutir medidas que possam dar mais respaldo à categoria em momentos como esse. “O que vai na mesa do pessoal somos nós que fazemos, e não temos contado com atitudes que propiciem facilitar a produção, baixando custos e acessando a população que precisa desse alimento local, limpo de agrotóxicos e com preço justo, que é o tripé da economia solidária e do Slow Food.”
O fortalecimento do PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) pelo Governo Federal, o maior acesso ao crédito para a agricultura familiar e um novo olhar para a produção agroecológica são algumas das principais pautas da categoria. “Eu espero que essa crise consiga fazer as entidades enxergarem a importância de ter um alimento agroecológico, da agricultura urbana e dos povos tradicionais. A agroecologia não é só produzir sem veneno, é se preocupar com o outro, com a saúde de quem está comendo”, conclui Antonio.
Por falar em saúde, já que a recomendação é ficar em casa, a valorização do ato de cozinhar bons alimentos para manter a imunidade alta também adentrou o discurso com firmeza, e recorrer à fermentação de alimentos pode ser um modo interessante de evitar o desperdício, além de adicionar nutrientes às preparações, já que os fermentados são muito ricos em probióticos.
A chef de cozinha e integrante do movimento Slow Food Brasil Lis Cereja lembra que “os fermentados são ótimos para a saúde, além de serem muito versáteis na cozinha, pois ajudam a preservar os alimentos, como em conservas, e também a reaproveitar. Restos de vinho, por exemplo, podem virar vinagre. Tenho amigos que nunca fizeram um pão de fermentação natural e agora descobriram, no isolamento, como é fácil e até rápido.”
Para Lis, é papel do chef de cozinha incentivar as boas escolhas alimentares, a compra da agricultura familiar, a opção pelo consumo local, a dedicação à cozinha e à saúde, e a busca de informações sobre ingredientes e tradições alimentares. “É ensinar como fazer, dar o exemplo e ajudarmos uns aos outros. Tudo isso visando uma mudança global de estilo de vida para melhor, para um mundo mais consciente e mais saudável em todos os aspectos”, diz a chef da Enoteca Saint VinSaint, que dá várias dicas sobre o tema nas redes sociais.
Tanto para Lis quanto para Antonio, a opinião é unânime: é preciso ficar em casa, mas é fundamental que, unida, a sociedade passe a rever hábitos de consumo e a repensar o atual modelo social e econômico. “Espero que agora as pessoas consigam entender que é preciso mudar. Não temos mais tempo para errar e consertar”, diz Antonio. “O momento pede união e ainda mais força de todos aqueles que acreditam que podemos voltar para o mundo, depois do isolamento, melhores do que entramos nele”, conclui Lis.