No interior de Prainha, em comunidades ribeirinhas situadas às margens do Rio Amazonas e de seus afluentes, território Baixo Amazonas, muitas famílias produzem piracuí, palavra de origem indígena para referir-se a farinha de peixe.
Produzido a partir de receita e modo de fazer que vem sendo ensinado há séculos, a cultura da desidratação da carne de peixe, que é transformada em farinha (piracuui em nhengatu amazônico), é uma prática dos antepassados indígenas repassada oralmente de geração a geração. O piracuí está associado não apenas à tradição no modo de preparo como também à forma de manejo e relação com os recursos pesqueiros da região, temas que já foram abordados no site Slow Food Brasil em artigos de Neide Rigo e Glenn Makuta.
Se há algumas décadas a disponibilidade de peixes era significativamente maior na região, atualmente as famílias que vivem ali explicam que, devido ao aumento da pesca e descuidos especialmente em relação à época de procriação dos peixes, na região diminuiu a ocorrência de muitas espécies, entre elas a do Acari, peixe da família dos cascudos, espécie preferida para a produção de piracuí no Baixo Amazonas.
O acari é considerado o melhor peixe para fazer farinha, como explicam as famílias da Comunidade Menino Deus, que nos acolheram às margens do Anema, não apenas porque assim vem sendo ensinado de pais e mães para filhos e filhas como também porque esse peixe, além de não ter escamas, tem espinhas grandes, o que faz com que a farinha fique mais “limpa” ou, pelo menos, mais fácil de catar do que se feita com outro tipo de peixe. Além disso, como também explicaram, o sabor de piracuí de acari é melhor e quem conhece, só de olhar já sabe se a farinha é só de acari ou se ali há mistura de outros peixes.
Mas, voltando à pesca do acari, a comunidade nos explicou que há alguns anos foi feito um acordo de pesca entre os pescadores da Comunidade Menino Deus, que possibilitou conscientizar as famílias do local sobre o manejo adequado do acari para que fosse possível pescá-lo em boa parte do ano, respeitando-se o período de defeso. Famílias ribeirinhas que vivem às margens do rio Anema contaram que, se não fosse o acordo de pesca que garante que em um igarapé, afluente do rio Anema, o acari possa se reproduzir e crescer adequadamente, os pescadores teriam que viajar longas distâncias para a captura do acari, como outras comunidades já precisam fazer. E aqui vale lembrar que viajar é por rios e igarapés, já que, nessas comunidades, os rios fazem às vezes de avenidas, estradas e ruas.
Por meio do acordo de pesca, a comunidade se compromete a, em um igarapé específico, preservar os peixes respeitando o período de defeso, não pescando peixes que ainda não chegaram à idade adulta. Com isso, as famílias do Anema dispõem de matéria prima próxima da Comunidade, de forma que podem mais facilmente produzir piracuí ao longo de todo o período do ano em que a pesca do acari é permitida.
Logo após ter sido pescado, o que é feito de forma artesanal com rede de pesca, os peixes são mantidos vivos no rio, próximos ao local onde será feito o piracuí. Essa forma de manter os peixes é porque, para a farinha ficar boa, o acari precisa ser fresco, o que significa que ele precisa estar vivo e ser abatido no momento em que a farinha vai ser preparada. Para o abate, a cabeça do peixe é cortada de forma rápida e certeira. Como na cabeça não há carne, as cabeças, desprezadas, são levadas para a terra porque, pela quantidade de carcaças, se fossem jogadas no rio, poderiam contaminá-lo.
Depois do abate, a etapa seguinte acontece em uma estrutura coberta, anexa à casa de morada da família. Nesse local, os peixes são lavados e fervidos em água até o ponto em que é possível separar a carne da “couraça”, etapa chamada de “descasca”. Quando todos os peixes estão cozidos e toda a carne está separada, ela é colocada em um tacho que, sobre o fogo, dá início ao processo de “escaldar” o peixe, ou seja, tirar toda a umidade. Nesse processo, à medida que a água vai se evaporando, com uma espécie de rodo de madeira manuseado de forma vigorosa, a carne vai sendo desmanchada em pequenos pedaços que vão ficando cada vez mais miúdos, a ponto de, ao longo do processo, virar farinha. Mas isso vai acontecer na fase subsequente à “escalda”, quando a massa de carne deixa de grudar no fundo do tacho e começa o processo de torra. Nessa fase, acrescenta-se sal e, com o avanço da torra, o aroma vai mudando, deixando um cheiro delicioso no ar! Nessa fase, as famílias lembram que não se pode ter pressa e aumentar muito o fogo: se isso for feito, o piracuí queima e, aí, perde qualidade.
Depois de torrada e bem aerada, a farinha é peneirada para retirar espinhas maiores e partes de ossos para, depois, ser embalada em embalagem fechada (geralmente saco plástico) para não haver contato com o ar e, assim, aumento de umidade no piracuí, o que comprometeria a durabilidade do produto. Depois de embalado, o piracuí é vendido a atravessadores que, no período de produção desse peixe (de agosto a novembro), passam pelo menos uma vez por semana na comunidade para comprar e revender em cidades próximas, especialmente em Santarém, maior mercado do produto.
O escoamento do piracuí acontece também por meio de redes de interconhecimento pois, como essa é uma iguaria da região, quem vai até ali visitar familiares ou amigos, sempre leva piracuí. No entanto, nos últimos anos, a proibição do transporte aéreo de piracuí tem prejudicado esse fluxo. As companhias aéreas proíbem aos passageiros de transportar a farinha, argumentando ser material inflamável. Essa proibição gera polêmica e frustração entre os apreciadores, sendo que, por ora, essa questão, escassamente explicada ou justificada, não está resolvida.
E é piracui assado ou cozido?
Logo que chegamos na Comunidade Menino Deus, perguntando sobre o piracuí de acari, nos contaram que há piracuí assado e cozido, mas atualmente, na comunidade visitada, só se faz o cozido. A diferença entre eles está no início do processo. No caso do piracuí cozido, o peixe é cozido em água, enquanto que no caso de ser assado, isso é feito por meio de muquém, técnica de origem indígena para assar peixes em fogo lento e na fumaça. Quando assada, a carne do peixe fica mais enxuta, facilitando as etapas de escalda e torra. Mas, por outro lado, em relação à opção de cozimento, assar o peixe demanda mais trabalho, tempo e cuidado, principalmente na etapa de “descasca”. Por isso, na comunidade visitada, as famílias preferem fazer o piracuí cozido, pois mesmo que alguns digam que não é tão gostoso quanto o assado, o trabalho é facilitado.
Assado ou cozido, o piracuí é um produto que, como tantos produtos artesanais do Brasil, diz respeito à história, à cultura, à tradição, mas também à renda, essencial para a manutenção das famílias.
Além disso, é claro que o piracuí também está no prato das famílias produtoras que, tanto quanto os consumidores da cidade, apreciam essa iguaria e, desde crianças, aprendem, o valor e o sabor, a título de exemplo, de um bolinho de piracuí ou de mojica, pirão feito a base de piracuí e farinha de mandioca.
Nessa viagem, além de provar (e me apaixonar) pela história e pelo sabor do piracuí, me encantei também com a riqueza da simplicidade e da alegria que encontramos às margens do rio Anema, onde, das casas às margens do rio ou do barco que nos serviu de hotel nos dias em que lá ficamos, a vista da vegetação, do nascer e do por do sol (e também da lua, pois tivemos a felicidade de estar lá junto com a lua cheia) completam um cenário que, alimentado pela sociabilidade e receptividade das famílias locais, falam da riqueza do piracuí, mas muito além disso, também nos contam da riqueza de um povo que, desde criança, está próximo da terra e da água, das árvores, peixes e frutos. Olhando assim, é fácil entender que, como nos contou um morador da comunidade, ali é o paraíso, lugar melhor que qualquer cidade no mundo!
Se você quer conhecer um pouco mais sobre este paraíso e sobre o piracuí, assista ao vídeo Piracuí do Baixo Amazonas, (disponível aqui), construído a partir de visita à região.
Agradecimentos
Agradeço a oportunidade de, ao conhecer sobre a produção de piracuí, aprender tanto sobre a vida. E, por tantos aprendizados, sou grata à Comunidade Menino Deus/Prainha/PA, que nos acolheu tão bem e tanto nos ensinou. Agradeço aos colegas na consultoria IICA/MAPA, em especial Rodrigo Lopes de Almeida, Carlos Roberto de Castro (Caiuca) e a Jesus de Nazareno Magalhães de Sena, Kepler Braun e Ananias, pelos contatos e oportunidade. Agradeço também à Prefeitura de Prainha que, por meio do Secretário Geral Dinaldo Pedroso e do Secretário de Produção Arnoldo Pingarilho e do Assessor de Comunição Nadioberto, nos proporcionou conhecer, de forma incrível e sensível, a Comunidade Menino Deus. Também sou grata à ONG Sapopema (http://www.sapopema.org) que, representada por Antonio José Bentes, tanto nos ensinou sobre os modos de vida da região, e ao Rivelino, da Colônia de Pescadores Z-31, que nos deu aulas sobre pesca e acordos de pesca. Por fim, mas não menos importante, ao “Preto” que, como Comandante do B/M Águia, nos levou até o Rio Anema e também a Rose e a Mel, que durante os dias no barco garantiram comidas deliciosas que alimentaram também boas conversas! A escrita deste texto também foi especial e contou com a leitura atenta e ótimas contribuições de Vicente Marques, Carlos Roberto de Castro (Caiuca), Dinaldo Pedroso e Danielle Wagner. Agradeço a disponibilidade e generosidade de vocês em contribuir com essas notas de viagem!
* Fabiana Thomé da Cruz trabalha como professora colaboradora no PGDR/UFRGS e em consultorias na área de produção e processamento de alimentos artesanais e tradicionais. Mais recentemente, tem também se dedicado a cultivar o Projeto Ciência com Afeto.