O Convívio Engenhos de Farinha/SC juntamente com a equipe do Cepagro está facilitando a nova fase de articulação e fortalecimento das famílias e instituições detentoras do patrimônio cultural agroalimentar ligado aos Engenhos de Farinha de Mandioca de Santa Catarina e parceiros. O último encontro ocorreu nos Areais da Ribanceira, em Imbituba, comunidade que entrelaça diversos nós da Rede Slow Food Brasil acumulando a comundiade do alimento da Farinha Polvilhada, Bijajica e Butiá.
Confira a matéria de Carolina Dionísio, jornalista do Cepagro e membro do Convívio Engenhos de Farinha, replicada do blog https://engenhosdefarinha.wordpress.com
“Cada uma dessas tábuas tem histórias de muito amor e luta”. Emocionada, a engenheira agrônoma Marlene Borges, uma das fundadoras da Associação Comunitária Rural de Imbituba (ACORDI), lembra o histórico de resistência de cerca de 100 famílias de agricultores e pescadores dos Areais da Ribanceira contra a desterritorialização promovida pela especulação imobiliária e por grandes empreendimentos chamados desenvolvimentistas. Vivendo há quase 200 anos da agricultura familiar itinerante e da pesca artesanal, a comunidade hoje luta para manter as terras das quais depende seu modo de vida, encurraladas entre o Porto de Imbituba, loteamentos imobiliários e plantas de produção de cimento e gesso. No centro desse território em disputa está o Engenho da ACORDI, construído entre 2002 e 2004. Foi no galpão anexo a esse “espaço sagrado” – nas palavras de Marlene – que aconteceu o II Encontro da Rede de Engenhos Artesanais de Santa Catarina no domingo passado, 29 de janeiro.
O Engenho e o Galpão da ACORDI, nos Areais da Ribanceira: espaços de luta e resistência da agricultura tradicional e da pesca artesanal
O evento reuniu quase 40 famílias de agricultores e “engenheiros” de Imbituba, Garopaba, Florianópolis, Biguaçu e Palhoça, além de pesquisadores, representantes do Núcleo de Estudos Açorianos da UFSC e do IPHAN/SC, além do Prefeito de Imbituba e do Secretário de Agricultura. No desenrolar das atividades, que incluiu um mapeamento participativo dos engenhos da costa sul de Santa Catarina, ressaltou-se a importância de conservar não só os engenhos em funcionamento, mas os saberes e dinâmicas agrícolas das comunidades e a agrobiodiversidade das variedades de mandioca e outros cultivos de subsistência. Ligada a esse sistema agroalimentar representado pelos engenhos está a própria identificação cultural de centenas de famílias que os mantém vivos, sejam como unidades produtivas ou espaços de memória. O próximo Encontro da Rede será em Garopaba, no final de março ou início de abril.
As atividades do dia tiveram dois momentos básicos: um diálogo sobre Patrimônio Imaterial mediado por Carla Ferreira Cruz, do IPHAN, e o mapeamento participativo dos engenhos de farinha de Santa Catarina, facilitado pela equipe do Ponto de Cultura Engenhos de Farinha: Giselle Miotto, Manuela Braganholo, Flora Castellano e Alexandre Pires Lage. Para abrir o evento, o Prefeito de Imbituba, Rosenvaldo Júnior, e o Secretário de Agricultura, Pesca e Infraestrutura do município, Evaldo Espevim, falaram do empenho da nova administração em “restabelecer a agricultura e a pesca em Imbituba”, ressaltando o fato de que o Plano Diretor exclui áreas rurais do município. “Mas estas atividades podem coexistir, não é preciso acabar com o campo em nome do desenvolvimento”, afirmou o Secretário, que visitou, junto com Marlene, quase 40 engenhos durante a mobilização prévia ao Encontro.
Na sequência, Marlene Borges e o agricultor Luiz Farias apresentaram a ACORDI, fundada em 2002 como uma estratégia de defesa das famílias dos Areais da Ribanceira contra sua desterritorialização: as terras que eles tradicionalmente cultivavam em uso comum haviam sido vendidas para a empresa ENGESSUL em 2000, a R$ 0,11 o metro quadrado. Com a construção do engenho e a realização da primeira Feira da Mandioca de Imbituba a partir
de 2004, a ACORDI fincou suas raízes e passou a buscar a regularização de seus territórios. Ao longo de seus quinze anos, a Associação sofreu revezes. Cerca de 70 famílias perderam suas terras em ações de reintegração de posse a favor da Engessul em 2010, quando também tentou-se demolir o Engenho para a construção de uma estrada. Fazendo barricadas e com o abraço do movimento estudantil, eclesial e do MST, a ACORDI defendeu seu engenho e o que ainda restavam de suas terras durante um mês. “A comunidade sabe onde é seu território”, afirma Marlene, que ressalta o caráter itinerante da agricultura tradicionalmente praticada pela comunidade.
“Fica até difícil falar depois da Marlene”, reconheceu Carla Ferreira Cruz, do IPHAN. Sua fala sobre Patrimônio Imaterial corroborou a importância da mobilização comunitária que caracteriza o histórico da ACORDI e a formação da Rede de Engenhos: “Se a comunidade não se unir, o Estado não vai cuidar daquele bem a ser patrimoniado. E uma Rede é uma forma da comunidade se blindar e fortalecer. Patrimônio Cultural tem a ver com resistência”, afirmou. Contudo, independente de um título de “Patrimônio Cultural” concedido pelo Estado, as comunidades precisam apropriar-se do que querem preservar e passar para as próximas gerações: “Independente se encaminham para registro ou não, o que precisa estar claro é o que é importante para a comunidade”.
O processo de registro dos engenhos como patrimônio cultural imaterial já foi vislumbrado pela ACORDI como outra estratégia de resistência de sua agricultura tradicional. Carla Cruz alertou, por outro lado, que o registro seria mais um diferencial nesse processo de regularização fundiária, mas que não pode garanti-la. “O IPHAN não tem como garantir território. Mas a chancela pode ser um capital para a articulação política na busca da regularização”, esclareceu.
Se o pedido de registro como Patrimônio Imaterial deve partir das comunidades, perceber onde estão e quantos são esses engenhos é um passo importante. Nesse sentido é que a equipe do Ponto de Cultura promoveu durante o Encontro um mapeamento dos engenhos de farinha e de cana de açúcar na costa de Santa Catarina. Divididos em 4 grupos, os participantes vasculharam suas memórias individuais e comunitárias para colocar no papel a (re)existência desses locais tidos como extintos, inativos, mortos.
Só na região de Imbituba foram listados 105 engenhos. Marlene e Evaldo visitaram 39 deles para convidá-los ao Encontro; destes, 25 estavam ativos – 3 realizando comercialização e 22 para subsistência e “o prazer de produzir farinha”. A região da Ribanceira, onde está a ACORDI, concentra 18 engenhos, mas somente 2 estão em funcionamento. O agricultor Luiz Farias lembra que ainda faltaram 8 comunidades na lista: com isso, pode-se chegar a quase 200 engenhos só nesse município. O agricultor Aurino de Souza fez outra ressalva importante: a queda na atividade dos engenhos deve-se à perda das áreas de cultivo de mandioca pelas famílias da região. Ele chegou a produzir entre 500 e 800 sacos de farinha anuais, num engenho manual. Hoje, ainda que com um motor, chega a no máximo 40 sacos por ano. Isso porque ele foi uma das 70 famílias que perdeu as terras para a Engessul em 2010. “Ficamos só com as roças perto da casa. As terras os poderosos tomaram”, lembra.
Outra grande concentração de engenhos foi registrada pelo grupo de Garopaba: 50, com 45 deles produzindo para o auto consumo, 3 para comercialização e 1 semi-industrial que é comunitário. De acordo com José Furtado, agricultor agroecológico de Garopaba e membro da Rede Ecovida de Agroecologia, “a maioria do pessoal mantém o engenho porque a história da família tá ali. Como que vou derrubar algo que meu avô construiu 60 anos atrás?”.
A mesma importância histórico-cultural foi destacada pelo grupo de Florianópolis, que registrou a existência de 27 engenhos na Ilha de Santa Catarina. “A maioria ainda deve fazer farinha 1 vez por ano, pra não deixar morrer a cultura”, afirmou João Heidenreich, engenheiro agrônomo e herdeiro do
engenho de sua família no Ribeirão da Ilha. Sem áreas para o cultivo, precisam comprar mandioca para produzir farinha. A irmã de João, Graziela, disse que tem o sonho de conseguir conjugar o turismo com a produção de farinha para manter o engenho ativo.
Na região de Palhoça e Paulo Lopes foram mapeados outros 10 engenhos. “Mas já existiram 40 só no sul da Palhoça, nas comunidades das Três Barras, Pinheira e Maciambu”, contou a professora Jaqueline Prudêncio, moradora das Três Barras. Um dos engenhos ativos ali é do casal Rosa e João Nascimento, que compareceram ao evento com uma cesta cheia de quitutes de mandioca:
beiju, cuscus e bijajica. Produtos que também podem constituir o patrimônio imaterial dos engenhos, juntamente com as diversas variedades de mandioca, segundo o professor do Departamento de geografia da UFSC Nazareno José de Campos, que também participou do mapeamento. “A modernização do maquinário não necessariamente descaracteriza os engenhos, pois existem todas as outras características de
produção da mandioca e seus derivados”, disse.
O agricultor Luiz Farias, de Imbituba, concorda: “Ficam olhando se o engenho é elétrico ou com boi, mas o mais importante é a matéria prima, é a mandioca na roça”. Como disse Marlene Borges, “fica
difícil pensar no registro do modo de fazer farinha sem considerar o sistema produtivo da mandioca”. Neste sentido, os inventários dos Quilombos do Vale do Ribeira e do sistema agrícola do Rio Negro são referencias importantes de registros de Patrimonio Imaterial que envolvem agricultura, território e biodiversidade.