Chefs da região dedicam-se a trabalhar com os mais frescos ingredientes vindos de fornecedores locais e colocam a sustentabilidade à mesa
No Ano Internacional da Agricultura Familiar, definido pela Organização das Nações Unidas, “que tal pensar em como seus hábitos alimentares podem beneficiar o equilíbrio do planeta?” A frase que abre a home page do movimento Gastronomia Responsável, idealizado em 2010 pela Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, serve de provocação ao que virá a seguir. À época, a Metrópole conversou com o chef curitibano Celso Freire, espécie de embaixador dessa história que, tal corrente do bem, virou tema de congresso e envolveu cozinheiros, fornecedores e gourmets em prol de uma gastronomia sustentável de fato: a que se vale de ingredientes regionais e livres de agrotóxicos; prega a não-utilização de espécies ameaçadas de extinção, a correta reciclagem e o fim ao desperdício. Nesse meio tempo, inúmeras outras iniciativas surgiram, assim como os termos agricultura biodinâmica, alimentos orgânicos, fomento à cadeia produtiva reverberam nas cozinhas brasileiras. E nas daqui da região, tem muita gente fazendo sua parte.
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Chef Celso Freire, de Curitiba: embaixador da gastronomia sustentável no Brasil
Antes de introduzir os exemplos, o chef do restaurante Quiota e professor de gastronomia da Universidade São Francisco (USF) Diego Calvi faz uma ressalva: “Quando pensamos em gastronomia sustentável, devemos nos lembrar de que isso significa sustentar, de forma consciente, todo o entorno em que vivemos, econômica e socialmente. Se formos além, veremos que o que é regional ou típico tem mesmo tudo a ver com o conceito de sustentabilidade.” E lembra de todo o empenho que o chef-celebridade Alex Atala tem feito ao longo da última década para redescobrir e valorizar os ingredientes brasileiros – algo que começou pela “porta” amazônica e se estendeu para os rincões.
Desde o ano passado, Atala estrutura o Instituto Atá, de caráter multidisciplinar, que visa algo complexo: “Aproximar o saber do comer, o comer do cozinhar, o cozinhar do produzir, o produzir da natureza.” Entre as ações envolvidas no projeto está o Retratos do Gosto, movimento de chefs em torno de uma linha de produtos criada para valorizar o pequeno agricultor e incentivar a produção de ingredientes como o mini-arroz, oriundo do Vale do Paraíba e único no mercado.
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Diego Calvi, do Quiota: “O que é regional ou típico tem mesmo tudo a ver com o conceito de sustentabilidade”
“Estamos resgatando conceitos, valorizando a cozinha familiar autêntica e os antigos meios de produção e consumo de alimentos. Com a industrialização, ficou mais difícil manter um estilo de vida saudável. Acontece que não basta optar por orgânicos, que às vezes chegam deteriorados ao mercado e à mesa. Há que se repensar a maneira como se dá a produção, a distribuição e o transporte, o preparo, o aproveitamento e a reciclagem de cada ingrediente. Ir além e ensinar isso nas escolas de gastronomia”, defende Calvi.
Há uma leva de cozinheiros da região arregaçando as mangas em prol dessa “nova” filosofia do comer. Caminho sem volta, no melhor sentido, na opinião de bambas como Laurent Saudeau, Thiago Castanho, Roberta Sudbrack, Helena Rizzo…
Valorizando o terroir
Quando assumiram a cozinha do hotel Lake Villas, em Amparo, os chefs Rafael Machado e Alberto Garcia se dedicaram ao reconhecimento do entorno e a propor aos hóspedes que se atrevam a comer de um jeito sustentável. “O menu, completamente autoral, é modificado diariamente a partir do que tivermos de melhor e fresco. Com açafrão, caviar e trufas, em tese, é fácil sofisticar uma receita. Nossa ideia é surpreender ao apresentar pratos de alta gastronomia elaborados com ingredientes simples que nascem aqui ou são de fornecedores sustentáveis, certificados e que estão num raio de 50 km. O que nos interessa é a qualidade”, introduz Machado que deixou o restaurante recentemente para se tornar chef executivo no Parque Balneário Hotel, em Santos.
O cordeiro provém do vizinho amparense – da Cabanha Oviedo, da Quirós Gourmet, onde os animais são criados de uma maneira peculiar. Ervas secas e conservas são da Companhia das Ervas, que tem sede em Morungaba. “E assim por diante. É uma cadeia de parcerias conquistadas pelo contato direto com os fornecedores. Eles, nós, os clientes, o planeta; todos ganhamos. E, aos poucos, vamos quebrando paradigmas”, decreta o chef.
Classificado como Charm Hotel, o empreendimento conta com horta biodinâmica e pomar orgânico, onde quase tudo brota; além de 14 fontes de água mineral, granja (de onde vêm os ovos caipiras) e 12 lagos naturais onde tilápias, pintados, dourados e outros pescados se reproduzem. Seria loucura não aproveitar tudo isso na cozinha.
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Dercílio Aristeu Pupin, da microempresa Família Orgânica: fornecedor seguro para grandes restaurantes
Durante o mapeamento da fauna e flora, o agrônomo Ivan Broleze detectou ao menos 70 variedades de folhosas e 50 espécies de frutas. “O que há de ervas aqui impressiona. A polinização das plantas é natural, mantemos um pequeno apiário com essa intenção. O controle de pragas, biológico, o cultivo e a colheita respeitam as regras naturais de safra”, explica Broleze, que também é um pequeno produtor de suínos, fornecedor para o próprio hotel e também para restaurantes da região.
Cestas de legumes e hortaliças são distribuídos aos funcionários, periodicamente. E, se quiser, além de conhecer todo o projeto, o hóspede pode levar uma cesta de orgânicos no check-out. “Nada se perde. Da flor à folha da capuchinha, que brota aos montes por aqui. Se a safra de tomate foi boa, providenciamos molhos, extratos e distribuímos. Com uma boa reação de Maillard, um alho-poró se destaca à mesa”, ilustra Machado.
Quem sabe o que está na época é o senhor João Bosco. “Na cozinha, que também funciona como uma espécie de laboratório criativo, desenvolvemos o projeto de brotos e germinados e nos dedicamos às criações. O menu é disponibilizado num tablet”, acrescenta Garcia. A ode à sustentabilidade não cessa na gastronomia. Toda a estrutura do hotel, que também conta com spa, foi planejada para aproveitar o máximo da luz natural e do frescor. Ar condicionado? Só nas dependências em que há real necessidade.
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Sítio Terra Mãe, em Joaguim Egídio: área adquirida pelo casal Zezé Ferri Viesi e o marido, Francisco produz alimentos orgânicos e biodinâmicos
Ponte com o Slow Food
Essa nova filosofia do comer tem relação com os preceitos do movimento Slow Food, iniciado pelo cozinheiro italiano Carlo Petrini, em 1989. Desde lá, uma gama de cozinheiros de todo o mundo defende que o alimento seja “bom, limpo e justo”, contribua para o resgate da cultura local e para a união de toda cadeia pela qual ele circula.
Adepta dessa máxima, Zezé Ferri Viesi e o marido, Francisco, empresários da área da saúde, decidiram, em 2009, comprar um sítio em Joaquim Egídio para dar início à produção de alimentos orgânicos. Hoje ela é representante do Slow Food na região e o sítio Terra Mãe virou uma ponte entre cozinheiros, consumidores e fornecedores, além de local de estudo do meio e vivências aberto à comunidade. “Desenvolvemos um projeto para trabalhar a saúde pela perspectiva da educação. Fizemos parcerias com a Unicamp para entender da agricultura orgânica e biodinâmica, estudamos o mercado natural no Brasil e na Europa”, lembra Zezé.
Com o tempo, ela se deu conta de que um dos desafios a enfrentar seria o de fazer as pessoas cozinharem com os produtos da terra. Passou a participar de feiras de orgânicos e notou que se os cozinheiros não recorrem ao fornecedor que está logo ali, talvez fosse por mero desconhecimento sobre o que esses vizinhos produzem. “Gastronomia sustentável não é algo utópico, mas depende de engajamento. O consumidor quer algo saudável, mas crê que pagará caro por ele. Isso é mito. Ele pagará o justo por um produto de qualidade, vivo, de procedência. Se houver maior envolvimento e mobilização dos restaurantes, as pessoas serão influenciadas naturalmente a rever seus hábitos.”
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Liliana Barreto, do Café Maritaka, Suzanna Ulson, do restaurante Capela, e Viviane Moraes, do Estação Marupiara: convicção no pensamento sustentável
E aí cita o chef paulistano José Barattino como exemplo. Em 2009, enquanto chefiava a cozinha do restaurante do Hotel Emiliano, ele desenvolveu um trabalho de cooperação com a Família Orgânica, microempresa sustentável idealizada por Dercílio Aristeu Pupin, cuja jornada agroecológica em prol de que “a vida se desenvolva em equilíbrio” é assemelhada à de Zezé. “Temos bastante diálogo. E admiro chefs que se preocupam em saber de todo o processo de produção do alimento, caso do Barattino, que já fez cursos conosco e é parceiro de produtores. Em Campinas, a chef Manuella Delatorre (Cayena Bistrô) e o chef Erick Alsaro (Duo Bruschetteria e Bottega), entre outros, se mostram engajados”, cita.
Anualmente, no 10 de dezembro, o Slow Food realiza o Madre Day, evento gastronômico colaborativo mundial, em que produtores, chefs, gastrólogos e gourmets se unem para cozinhar e resgatar ingredientes e receitas regionais. Desde 2012, o sítio Terra Mãe sedia o encontro e Zezé cria “pontes”. “Estamos traçando estratégias para este ano. Em Joaquim e Sousas há produtores de verduras, legumes, ovos, linguiça, licores e geleias. Em cidades do entorno como Morungaba, Itatiba, Vinhedo existem muitos produtores certificados, inclusive pela Associação de Agricultura Natural de Campinas e Região (ANC)”, cita.
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Priscila Quirós, da Quirós Gourmet, produtora de cordeiro, e Manuella Delatorre, do Cayena Bistrô: regras para criação de animais
Trabalho em conjunto
Desde o Madre Day de 2012, a chef Viviane Moraes, que preside a Adegas (Associação dos Dirigentes de Estabelecimentos de Gastronomia dos núcleos de Joaquim Egídio e Sousas), vem revisando a maneira como pretende conduzir o próprio restaurante, o Estação Marupiara, de forma sustentável e, também, influenciar outros restaurateurs a darem passo adiante rumo ao desenvolvimento local. “Percebi quantas iniciativas individuais já foram estruturadas, quer por produtores, quer por cozinheiros. Conversando com Zezé (do sítio Terra Mãe), Susanna Ulson (Restaurante da Capela), Liliana Barreto (Café Maritaka) e mais gente, ponderei que devíamos pensar em coisas em conjunto, trocar experiências e criar um projeto de desenvolvimento local e sustentável a partir daquilo que dispomos aqui. E estava todo mundo pensando parecido”, lembra.
Pela correria, ela não havia se dado conta, por exemplo, de que a receita da massa de cacau que desenvolveu recentemente tinha tudo a ver com a ideia da jabutipasta (massa de jabuticaba) da colega de dólmã Susanna, que também produz licores e geleias da fruta que brota à beça na Fazenda Santa Maria, onde há projeto voltado à educação ambiental. “A parceria entre cozinheiros deve substituir a competição acirrada. Um tem de ser parceiro do outro”, defende Susanna.
A fim de apertar os nós com os fornecedores locais, Viviane e membros da Adegas (são trinta, por ora) têm se reunido religiosamente para delinear ações. “Há demanda por produtos orgânicos e biodinâmicos, mas há que se estabelecer um padrão de fornecimento. E é fato que é preciso qualificar a mão de obra.”
Recentemente, ela também investiu no restaurante para deixá-lo mais verde. Refez o projeto dos coletores de água de chuva (captada e usada na limpeza de áreas externas) e dos de lixo, feitos com Tetrapak reciclado e devidamente identificados para facilitar a retirada. “O descarte deve ser feito de forma consciente. O óleo recolhido vira sabão, a matéria orgânica é destinada a uso animal, o restante reciclado”, exemplifica.
Pelo fim do desperdício
“Tornar um restaurante sustentável demanda tempo, esforço e investimento. Mas vale a pena quando se pensa no futuro das pessoas, do negócio e do planeta”, avalia Carlos Américo Louredo, diretor de gastronomia do Campinas Convention e Visitors Bureau e proprietário da rede Joe & Leo’s Restaurant Family. No ano passado, a unidade campineira, que funciona no Parque D. Pedro Shopping, recebeu o selo Planet Sierra Tenant Award, iniciativa da Sonae Sierra que abrange os centros comerciais nos sete países em que opera. O objetivo é reconhecer os lojistas com o melhor desempenho ambiental e que ao longo do ano desenvolveram ações positivas.
“Cada setor do restaurante se viu determinado a atingir uma meta. Repensamos o descarte de óleo, de matéria orgânica e reciclável, introduzimos o uso de produtos de limpeza biodegradáveis, fizemos uma triagem nos fornecedores visando a valorização daqueles sustentáveis, criamos projetos de controle energético, treinamos todos os colaboradores. O resultado mais positivo foi ver que os funcionários passaram a pôr em prática tudo o que aprenderam no dia a dia”, enumera.
Desde a construção da matriz, em 1993, Louredo vem talhando os conceitos sustentáveis. Para se ter uma ideia, a unidade instalada no Parque Nacional da Serra dos Órgãos, na cidade de Itaipava, no Rio de Janeiro, foi planejada, arquitetonicamente, para ser ecológica e parecer integrada ao meio ambiente. “Com essas ações que fizemos na unidade Campinas, atendemos hoje a um público 15% maior e só tivemos de aumentar as compras em 3%. A economia de energia é da ordem de 40%. Que empresário não almeja isso?”, indaga.
Ele acredita que os pequenos fornecedores, ainda que estimulados a crescer graças a incentivos governamentais, sabem que para se manter no mercado terão de se adaptar às exigências de órgãos como o Ministério da Agricultura, além de buscar as certificações. “É moroso. Só avançaremos se passarmos a modificar o contexto de forma conjunta. Vamos chegar num ponto em Campinas em que teremos mais fornecedores locais dispostos e empresários conscientes. As conversas sobre sustentabilidade no Convention são amplas porque abarcam gastronomia, turismo, hospitalidade. Em suma, estamos falando do desenvolvimento regional com olhar consciente, modificador.”
Texto originalmente publicado por Érica Araium em
Metrópole