No dia-a-dia, é frequente escutarmos que isso ou aquilo é “questão de gosto”, ao que segue a sentença: “gosto não se discute”. Como se no comportamento de consumo das pessoas não houvesse nada de interessante ou importante para ser refletido do ponto de vista social e objetivo, por tratar-se de algo dado naturalmente por fatores de ordem individual e subjetiva. Em oposição a essa ideia, argumenta-se, seguindo Bourdieu (1983), que o gosto, especificamente o gosto alimentar, é constituído socialmente e tem função importante na diferenciação social, na medida em que por meio dele formam-se estratégias de distinção, que exprimem diferentes estilos de vida e posições hierárquicas na estrutura de classes.
Para discutir argumentos como esses, buscamos ilustrar algumas ideias com exemplos retirados de dois filmes que tratam de gosto alimentar, gastronomia e culinária, e de diferenças entre classes sociais, quais sejam, Vatel: um banquete para o Rei (1999), de Rolland Joffé, e Estômago (2007), de Marcos Jorge.
Antes de qualquer coisa, é importante notar que a palavra gosto tem, pelo menos, dois significados. O primeiro refere-se diretamente ao sabor como atributo sensorial de alguma coisa (alimento), já o segundo à disposição de um indivíduo em realizar determinadas escolhas a partir das condições com que se depara, como sua posição de classe. De acordo com Seymour (2005, p.3), o conceito bourdiesiano de habitus “representa a ligação entre os componentes subjetivos e objetivos da classe, ou seja, classe como fruto de fatores amplamente econômicos, e classe como um conjunto de práticas, predisposições e sentimentos” tipicamente característicos de determinadas coletividades humanas. Assim o habitus, enquanto um conjunto de predisposições, propensões e tendências a pensar, comportar-se e agir de maneira que os membros pertencentes a uma determinada classe social consideram natural, óbvia e sensata, e não de outra, considerada inadequada, é um elemento que condiciona os gostos e as escolhas individuais. Neste sentido, conforme discute Pilla (2005, p.55), “o gosto alimentar é portador de laços sociais […], pois o consumo do alimento em companhia de outras pessoas revela-se como expressão de sociabilidade e poder”.
Essa posição teórica nos remete a algumas situações práticas apresentadas nos referidos filmes. Por exemplo, em Vatel, o objetivo do príncipe de Condé (que passava por dificuldades financeiras e, como forma de superá-las, almejava tornar-se general do exército francês), ao oferecer o espetacular, memorável e caro banquete ao Rei Sol, Luís XIV, em Chantilly, estava ligado à aquisição de prestígio político e militar, haja vista a eminência da guerra contra Guilherme de Orange, da Holanda. A pretensão do anfitrião é explicitada quando ele diz que “comparando a visita do rei a Chantilly com a guerra contra a Holanda, esta última não passaria de um piquenique”. Por outro lado, embora o rei absolutamente não desconsiderasse os motivos político-militares e inclusive econômicos do convite feito por seu anfitrião, e ele mesmo fosse interessado nisso, aceitou-o, sobretudo, por ser um apreciador das boas coisas da vida, como as belas artes, os sabores requintados da culinária francesa (que teve seu apogeu naquele período) e a valorização da etiqueta à mesa. O oferecimento de um banquete tão sofisticado e ritualístico era uma estratégia de busca de distinção perante a autoridade real.
Em contexto bastante distinto daquele apresentado no filme Vatel, a questão do poder e da sociabilidade também aparece no filme Estômago. Na falta absoluta de capital econômico, o protagonista Raimundo Nonato soube utilizar muito bem sua sorte, talento e sensibilidade inata para adquirir capital cultural e simbólico por meio do aprendizado da arte culinária. Esse trunfo permitiu-lhe ascender socialmente e alcançar a realização de alguns de seus desejos, como a relação com a prostituta Iria. Mas essa paixão levou Raimundo Nonato à desgraça – do mesmo modo que levou o maître Vatel, apaixonado pela bela Anne, à própria morte por suicídio. Nonato foi preso por assassinar, com requintes de crueldade, a prostituta Iria e seu amante – Giovanni, patrão de Raimundo no restaurante onde trabalhava –, que o traiam em plena noite de seu noivado. Na prisão, ele também conseguiu adquirir status, prestígio e poder por conta de seu talento gastronômico, cozinhando para os seus companheiros de cela e ascendendo na hierarquia.
Neste mesmo filme, destaca-se o estranhamento dos presidiários aos procedimentos alimentares introduzidos por Nonato. Por exemplo, quando ele ouve falar do hábito colombiano de comer formigas e resolve preparar para o líder da cela uma farofa com esse exótico ingrediente. Bujiu come e acha bom, mas ao tomar conhecimento do ingrediente principal, reage com violência, batendo em Nonato, virando o prato e mandando que ele lhe preparasse imediatamente uma “comida de homem”.
O mesmo estranhamento em relação a alguma coisa supostamente “aburguesada e afeminada”, nos termos de Bourdieu (1983), ocorre quando Nonato prepara um banquete para o líder criminoso Etecetera, sob encomenda de Bujiu, que por sua vez almejava adquirir prestígio e distinção. Nonato, um Vatel tupiniquim, serviu todo o banquete “a la française”, ou seja, um prato de cada vez, para que os diferentes sabores pudessem ser apreciados. Mas a percepção dos presidiários foi, em certo sentido, negativa. Eles questionavam porque não colocar todos os pratos na mesa para que eles pudessem fazer a refeição servindo-se do jeito e na quantidade que bem entendessem.
“Se o ‘homem é aquilo que come’, o que gosta de comer representa seu caráter, portanto, se gosta de alimentos refinados, seu gosto lhe confere qualidade e distinção” (PILLA, 2005, p.62). Assim, o “bom gosto”, valor socialmente construído desde o século XVII, converte-se em uma importante virtude social, reconhecida por quem a possui e pelos outros, tanto seus pares como aqueles de quem ele se distingue, pois representa demonstração de superioridade em termos de capital cultural ou mesmo econômico, pois “ter bom gosto sai caro”. Como bem observou Pilla (2005, p.68), “os banquetes das sociedades ocidentais, desde há muito, contribuem para manifestar publicamente o lugar dos que neles participam. A ostentação está tanto no efeito visual como na qualidade dos alimentos oferecidos. Os modos de vestir, de falar, as habilidades à mesa, a postura, a composição e as opções de cardápio e as predileções alimentares podem classificar os indivíduos”.
Referências
BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
PILLA, Maria Cecília Barreto Amorim. Gosto e deleite: construção e sentido de um menu elegante. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 42, 2005, p.53-69.
SEYMOUR, Diane. A construção social do gosto. In: SLOAN, Donald (Org.). Gastronomia, restaurantes e comportamento do consumidor. Barueri (SP): Manole, 2005. p.1-26.
* Fabiano Escher é economista, mestre e doutorando em Desenvolvimento Rural pelo PGDR/UFRGS, além de apreciador das artes gastronômica e cinematográfica.