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Reportagem: Tempo de valorizar o alimento bom, limpo e justo

texto de Ana Marson – O Correio Popular

 

Slow Food: movimento criado na década de 1980, na Itália, espalha-se pelo mundo e propõe uma nova forma de se relacionar com a comida

Quando éramos crianças, corridinhas à horta da esquina para suprir a falta de um ingrediente para o prato que a mamãe preparava para o almoço eram quase diárias. Mas tínhamos que comprar a verdura e voltar rapidinho, para não atrasar a refeição. De vez em quando, quando dava tempo para bater um papo com a "tia da horta", a graça era passear pelos canteiros e ouvir as explicações de como a semente germinava, crescia e virava o alimento que ia para a mesa. Essas idas frequentes à horta, os pés de alface e rúcula plantados no quintal, o senhor que criava galinhas e as vendia na feira, a família que, todo sábado, levava para a cidade as frutas que cultivava no sítio, as visitas ao sítio para comprar mel… Tudo isso fazia parte de um modo de vida que foi sendo abandonado enquanto a gente crescia, as horas livres escasseavam e o sentido de urgência tomava conta do mundo.As coisas mudaram. E muito. A satisfação de cultivar o próprio alimento (nem que fosse o almeirão da salada e a hortelã para o chá que curava qualquer mal) e de escolhê-lo nas feiras e mercados foi esquecido. Até o prazer de preparar as refeições e de reunir a família em torno da mesa perdeu espaço para a correria da vida moderna. Tudo parecia perdido aos que defendem uma alimentação saudável, até que alguém, em 1986, lá na Itália, teve um "click". Alertou o mundo para os "efeitos padronizantes" do fast food, o poder irrestrito das multinacionais, a agricultura industrializada, a homogeneização do paladar, a pressa ao comer. E propôs uma nova forma de nos relacionar com o alimento, batizada de Slow Food.

"O nome é uma referência a uma nova gastronomia, que começa com a escolha dos alimentos e a forma de produção, respeitando o meio ambiente e os produtores artesanais, chegando até a mesa, onde a convivência e a celebração são fundamentais", informa o site brasileiro do Slow Food. Criado pelo italiano Carlo Petrini, o movimento busca restaurar a dignidade cultural do alimento e os ritmos mais lentos de convivência à mesa, proteger os alimentos tradicionais, conservar métodos de cultivo e processamento. Defende ainda que a matéria-prima seja cultivada e produzida de modo sustentável e que a biodiversidade e as tradições alimentares e produtivas locais sejam salvaguardadas, como explica Petrini em Slow Food – Princípios da nova gastronomia (Editora Senac – São Paulo). A filosofia do movimento é, sobretudo, a de valorizar o alimento bom, limpo e justo. "Bom pelos sabor, frescor, aroma e propriedades organolépticas. Limpo porque não agride o meio ambiente e justo no valor, por valorizar a agricultura familiar, por dar dignidade ao homem do campo e valorizá-lo social e gastronomicamente", informa Cenia Salles, líder do Slow Food São Paulo. Por trás desse tripé está a sustentabilidade, observa o líder do convivium campineiro, Mario Firmino. O "ser sustentável" ganha espaço quando se opta por comprar produtos da própria região, cujo manejo respeita a sazonalidade e resulta em alimentos de qualidade particular. E, mais importante, que não requerem produtos artificiais nem energia extra no cultivo e na produção, não necessitam de armazenamento nem geram poluição com transporte. "Queremos trazer uma consciência de que se optarmos pelo Slow Food vai haver mudanças. Quando você se questiona de onde veio aquele alimento, já virou Slow Food. É uma opção simples e poderosa, que parte da pessoa", analisa Firmino.

Para Catarina Menucci, proprietária do ecomercado Avis Rara, em Sousas, as pessoas precisam resgatar o ato de cozinhar, de cultivar uma pequena horta, de viver o prazer e a alquimia de preparar o próprio alimento. "O movimento preconiza uma alimentação saudável, e um dos objetivos é lembrar as pessoas que, para ter saúde, é preciso ter tranqüilidade na hora de se alimentar, é necessário ter contato com a produção do próprio alimento. Tem que se reforçar a ideia de que a gente é o que come", comenta Catarina. "O Slow Food prega o resgate da comida local, caseira, artesanal, a valorização da riqueza de cada região. É uma metáfora, mas que se coloca no dia a dia a partir do momento em que as pessoas engolem a comida em frente à televisão e ao computador, sozinhas, sem convivência", analisa Cenia.

Pela conscientização dos consumidores

Clichê dos clichês é dizer que cada um pode fazer sua parte para melhorar a vida no planeta. Clichê, mas verdade. E vale também para o Slow Food, que ganha força com pequenas ações cotidianas e com a conscientização dos consumidores de que eles fazem, sim, parte do ciclo produtivo. Considerado co-produtor, ele orienta o mercado e a produção por meio de suas escolhas e assume novo papel no processo quando se torna consciente de seus atos. "As pessoas precisam estar conscientes de que há um ciclo, com produção, venda, compra e consumo, e de que elas não são isentas de responsabilidade. Se não buscam e não consomem alimentos mais saudáveis, locais, o mercado não vai atender a essa exigência", pondera Tatiane Santos, coordenadora do curso superior de tecnologia de gastronomia da Unimep e membro do convivium de Piracicaba. "Se o consumidor compra o que vem de fora, incentiva a produção em larga escala e a importação, que exige logística, gera custos e poluição. Tem que comprar produtos regionais, buscar alimentos não convencionais, diferentes, mais saudáveis, mais adequados ao ambiente. Por que vou ao mercado comprar uma erva que vem de São Paulo se posso pegar a mesma na horta ao lado da minha casa? Não tem mistério", completa.

Mãozinha para o social

Ao apoiar a busca por um alimento bom, limpo e justo, o Slow Food volta suas atenções também ao trabalho do produtor, incentivando a compra e o consumo de alimentos produzidos artesanalmente em propriedades de agricultura familiar, por pequenos extrativistas e comunidades. "O movimento quer apoiar o produtor para que não haja êxodo rural. E já está havendo uma conscientização, uma volta do campo à mesa", diz Cenia Salles, do convivium de São Paulo. Tatiane Santos, do convivium piracicabano, reforça essa preocupação com o pequeno produtor e diz que, ao seguir os preceitos do movimento, o mercado consumidor incentiva o homem a ficar no campo, a sobreviver do que planta em sua terra ou processa em sua casa. "Devemos buscar o alimento mais próximo geograficamente, comprar de pequenos produtores, em pequenos sítios, hortas. É uma atitude simples", afirma.

O que ainda falta?

Iniciativas têm sido tomadas para o Slow Food se firmar de vez entre os consumidores. Caso do Terra Madre Day, celebrado em 10 de dezembro, uma data dedicada a ações para chamar a atenção da população para a importância de uma alimentação saudável, e do Terra Madre, encontro mundial realizado em outubro, em Turim, na Itália. Ainda há as atividades promovidas em cada convivium. Apesar disso e do crescimento do movimento, ainda restam passos a serem dados antes que o movimento venha realmente para ficar entre os brasileiros. Cenia Salles, do convivium de São Paulo, acredita que falta visão às pessoas e um amadurecimento das políticas públicas voltadas ao pequeno produtor. "Aos chefs de cozinha falta fazer parcerias com produtores, respeitar a sazonalidade dos produtos, ter um cardápio flexível, com menus do dia, que usem alimentos locais, mais baratos, frescos e saudáveis", acrescenta. Para Tatiane Santos, do convivium de Piracicaba, falta às pessoas consciência e cultura. "Falta crítica, falta o consumidor entender que ele faz parte da cadeia e que alimenta essa cadeia", diz. Ela observa que, na Europa, o cenário é outro, com valorização da comida regional e um comportamento diferenciado do consumidor em relação ao alimento.

"Mas lá as pessoas têm saúde, emprego, têm tempo de refletir sobre o que vão comer. No Brasil, o povo ainda está lutando para ter o que comer", compara.

Estrutura do Slow Food

Convivium – grupos locais, responsáveis por articular relações com produtores, fazer campanhas para proteger alimentos tradicionais, organizar atividades, encorajar chefs a usarem alimentos regionais, indicar produtores para eventos internacionais e lutar para levar a educação do gosto às escolas. A eles, cabe cultivar o gosto ao prazer e à qualidade de vida no dia a dia.

Fundação Slow Food para Biodiversidade – criada para defender a biodiversidade alimentar e as tradições gastronômicas no mundo. Busca promover um modelo sustentável de agricultura, que respeite o meio ambiente, a identidade cultural e o bem-estar animal.

Fortalezas – projetos de desenvolvimento da qualidade dos produtos nos territórios, envolvendo pequenos produtores, técnicos e entidades locais. Dedicam-se a auxiliar grupos de produtores artesanais e a preservar produtos tradicionais de qualidade.

Comunidade do alimento – constituída por todos os sujeitos que operam no setor agroalimentar e que se caracterizam pela qualidade e a sustentabilidade das suas produções.

Cittáslow ou cidades slow – vilas e cidades determinadas a melhorar a qualidade de vida dos habitantes, particularmente no que diz respeito à alimentação. Ainda procuram preservar o patrimônio gastronômico.

Para salvar sabores

A Arca do Gosto identifica, localiza, descreve e divulga sabores quase esquecidos, de produtos ameaçados de extinção, mas ainda vivos e com real potencial produtivo e comercial. Desde 1996, quando a iniciativa foi colocada em prática, foram listados mais de 750 itens, 21 deles brasileiros.

Os alimentos brasileiros na Arca:

  • Aratu
  • Arroz vermelho do Vale do Piancó
  • Babaçu
  • Berbigão
  • Bergamota montenegrina
  • Cagaita
  • Cambuci
  • Castanha de baru
  • Farinha de batata doce krahô
  • Feijão canapu
  • Licuri
  • Mangaba
  • Marmelada de Santa Luzia
  • Néctar de abelhas nativas
  • Ostra de Cananeia
  • Palmito Juçara
  • Pequi
  • Pinhão de araucária da serra catarinense
  • Pirarucu
  • Umbu
  • Waraná nativo dos sateré-mawé

O Símbolo

O movimento Slow Food tem no caracol seu símbolo, escolhido porque se movimenta lentamente e come calmamente durante a vida. O caracol também é uma especialidade culinária do norte da Itália, especialmente da cidade de Bra, onde o movimento nasceu.


Orgânicos, um capítulo à parte

Alimentos orgânicos são aqueles produzidos sem agrotóxicos, fertilizantes ou qualquer outro produto químico. Não agridem o meio ambiente nem as pessoas envolvidas no processo, já que há a preocupação em se fazer manejo adequado do ar, água, fauna e flora, com responsabilidade com o trabalhador e com a saúde do consumidor, como explica Catarina Menucci, do ecomercado Avis Rara. "O orgânico é mais saudável, têm melhores sabor e frescor, maior vida útil e pode ser usado de forma integral. Mas é mais caro. Para o preço cair, tem que ter demanda, e isso é bom para todo mundo", diz Cenia Salles.

Por todos esses "prós" é que o movimento criado por Carlo Petrini é a favor dos princípios que norteiam a agricultura orgânica. Mas, de acordo com o Manual do Slow Food, não se pode dizer que são sinônimos.

O material informa que a filosofia defende que a agricultura orgânica, quando praticada em larga escala, é muito similar ao sistema convencional de cultivo de monocultura e, consequentemente, a certificação orgânica por si só não deve ser considerada pelo consumidor um sinal de que o produto é produzido de forma sustentável.

Catarina tem outra opinião. Segundo ela, para um alimento ser considerado orgânico não pode ser cultivado em sistema de monocultura nem em larga escala. Esse tipo de manejo, afirma, pede diversidade.

Pela certificação

A certificação é uma referência, uma maneira de "as pessoas da cidade" saberem se aquilo que estão prestes a levar para casa é, de fato, orgânico. O problema é que muitos pequenos produtores, mesmo sem utilizar agrotóxicos, não têm estrutura nem dinheiro para contratar certificadora. Foi por isso que produtores da região da mogiana se uniram e formaram o primeiro grupo de certificação participativa do Brasil, que até já tem selo. "É uma solução, porque o custo é baixo e eles ainda contam com o suporte de outros colegas", informa Catarina Menucci. O próprio grupo se autogesta e se autofiscaliza.

 


Texto de Ana Marson [email protected] publicado no caderno Metrópole, do jornal O Correio Popular (Campinas, SP) – Edição de 19/12/2010

 

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