Sacas de feijão no Empório Mania da Ilha

A alma dos mercados

O camarão com casca, o descascado e o miudinho. A anchova inteira ou cortada em filé. A farinha de mandioca em sacas: grossa, fina, nem grossa nem fina. As frutas em caixas, exibidas, umas por cima das outras. As carnes penduradas, as réstias de alho e de cebola atrapalhando a passagem, as frutas secas em vidros gordos com tampa prateada. O cheiro do peixe cru misturado ao do pastel que está saindo mais pra frente e, lá do fundo, ainda dá para sentir o perfume do café recém servido ao freguês. E gente e balanças e bigodes e conversas atravessadas e mais gente com sacolas penduradas. 

Sacas de feijão no Empório Mania da IlhaAh, os mercados! Públicos, centrais, mercados de rua e até os mercadinhos de esquina. Lugares onde a alma local aparece sem vergonha e sem disfarces. Onde se descobre se é época de tainha ou de melão. Onde se conhece quais são os produtos do território, o que vai no prato dos moradores da cidade e qual o sotaque e o humor do povo. Só nos mercados é possível se deixar levar pela beleza de baldes de azeitonas e, por impulso, voltar pra casa com um quilo delas, roxas, verdes, carnudas, temperadas, recheadas com pimentão. Só nos mercados é possível mergulhar a mão numa saca cheia de feijão e sentir os grãos gelados deslizarem na pele. Preto, branco, vermelho, feijão fradinho. É no mercado que se pode mordê-los no canto da boca para saber se são da última safra.

Anchovas no Mercado de FlorianópolisE saber que a alma dos mercados minguou até desaparecer quando estes viraram super. Supermercados cheios de produtos, ofertas e praticidades, mas vazios daquela dose concentrada do espírito do lugar. E a gente foi se habituando a fazer compras em silêncio ou ouvindo uma voz entusiasmada anunciar as imperdíveis promoções que nos esperam na próxima prateleira. Acostumamos a sentir perfume de aromatizador de ambiente dissolvido num ar-muito-condicionado e a estranhar o realismo de escamas e guelras escancaradas. 

Nélson, do Empório Mania da IlhaA alma dos mercados foi espantada pela luz fria dos corredores compridos dos supermercados, assépticos como os de um hospital. E com ela foi-se embora a riqueza de detalhes, as miudezas, as diferenças regionais, a pequenez das coisas. E também o contato, os encontros, as conversas. "No supermercado a gente faz todas as compras sem conversar com ninguém", reclama Nélson, que trabalha no Empório Mania da Ilha do Mercado Público de Florianópolis. Já no mercado… tem sempre alguém como ele, disposto a indicar a mercadoria mais fresca, mostrar um produto que acabou de chegar, escolher as melhores frutas e verduras.

Gente como Dauri, que trabalha há 15 anos na Peixaria Silveira, instalada há mais de 30 anos no Mercado de Florianópolis. "O cação veio hoje cedo pra nós, direto do alto mar, pode levar". Dauri também acredita que o atendimento dado aos clientes faz do mercado o melhor lugar para as compras. "A gente dá informações sobre os produtos que vende e para aqueles que não sabem lidar com peixe a gente dá receitas: a corvina fica boa ensopada, também dá pra fazer caldo. O camarão a gente descasca na hora e o cliente leva pra casa fresquinho. A lula a gente vende inteira e também corta em anel pra fazer à milanesa". Tudo isso faz com que se estabeleça uma relação de confiança entre quem compra e quem vende: "no mercado é sempre tudo fresco, a qualidade é superior aos produtos do supermercado. E a gente vende sempre o que tem de melhor", fala Dauri com muito orgulho.

Pudera eu passar meus dias percorrendo as bancas dos mercados do mundo, ouvindo as histórias, descobrindo novos temperos, trocando dois dedos de prosa, experimentando o queijo que desceu da serra, me perdendo entre as conversas de uma banca a outra. Mas se isso não é possível, nem pra mim nem pra você, experimente ao menos tomar o café da manhã dos sábados num bar do mercado e aproveite para comprar a carne e o peixe fresco, os ingredientes do almoço de domingo, alguns gramas de amêndoas e damascos. Depois me conte como foi!

 


Elisa Corrêa é jornalista e colaboradora da revista Vida Simples. Mestre em Comunicação pela Universidade de Florença, estuda a aplicação da "filosofia slow" ao jornalismo. [email protected]

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