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Queijo Artesanal Serrano: história e tradição nos campos de altitude do Sul do Brasil

Situada no Nordeste do Rio Grande do Sul e na região contígua de Santa Catarina, com altitudes superiores a 1.000 metros acima do nível do mar, a região conhecida como Campos de Cima da Serra é caracterizada por invernos rigorosos, tendo na pecuária em sistema de campo nativo sua principal atividade econômica.

Nasce também da atividade da pecuária de corte a produção artesanal de um queijo característico desse território, conhecido localmente como Queijo Serrano. Com uma tradição secular, que remonta ao período do tropeirismo no Brasil, e com uma receita tradicional, passada de geração a geração, há quase duzentos anos o Queijo Serrano é uma das principais fontes de renda das famílias de pequenos pecuaristas que se dedicam à sua produção.

As técnicas artesanais empreendidas na fabricação do queijo, com a utilização de leite cru de vacas de corte, alimentadas com pastagens naturais fornecidas por campos nativos, bem como o micro-clima específico da região, conferem ao produto características físicas e organolépticas únicas, que lhe dão especificidade e o distinguem de outros queijos.

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A tradição de produção do Queijo Serrano remonta a meados do século XVIII, quando era forte o vínculo com a atividade tropeira. Dos Campos de Cima da Serra, partiam tropas de mulas carregadas de queijo, entre outros produtos. No auge do período do tropeirismo, durante os séculos XVIII e XIX, o Queijo Serrano, então transportado no lombo de mulas, era o principal produto que garantia o abastecimento alimentar das famílias rurais. É assim que, dos Campos de Cima da Serra, desciam para a região do Vale do Tubarão, Santa Catarina, mulas carregadas com pinhão, charque e queijo, que então eram trocados por produtos como sal, açúcar amarelo, farinha de mandioca e arroz, que subiriam a serra no lombo das mulas que regressavam aos campos de altitude.

Na região estudada, o estabelecimento das primeiras fazendas teve como objetivo a ocupação do território e o aproveitamento da imensa reserva de animais deixada pelos padres jesuítas à época do fim das reduções no Rio Grande do Sul, no século XVIII. O comércio de gado e de muares para o centro do Brasil era altamente rentável para os produtores e comerciantes de animais e a pecuária de corte era a atividade principal das fazendas. Mas os trabalho e a lida com os animais nas fazendas exigia mão-de-obra que excedia o trabalho dos membros da família, e é assim que grande parte das fazendas possuíam agregados que, do cuidado com os afazeres da fazenda adquiriam o direito à moradia e à obtenção dos seus meios de vida.

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A produção de queijo era um subproduto da atividade da pecuária de corte, constituindo-se como uma particularidade do sistema, já que, segundo Ambrosini (2007), não teria sido intencionalmente organizado para isso. Para os grandes fazendeiros, não interessava a produção de leite ou de queijo, mas sim o comércio dos animais. É dessa forma que os animais em lactação do rebanho de corte eram “emprestados” para os agregados, que então, aproveitando-se do leite desses animais, seriam os primeiros a se beneficiarem da fabricação de queijos caseiros na região.

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Aquelas famílias que, com o seu trabalho nas fazendas, conseguiram acumular certo volume de recursos, especialmente através do aumento de seus rebanhos bovinos, acabavam elas mesmas tornando-se proprietárias de terra e assumindo a autonomia de suas vidas. Se, de um lado, o queijo era o produto que garantia o abastecimento de mantimentos das famílias, de outro era o gado que possibilitava a acumulação e a realização da condição de pequeno pecuarista. Assumida a condição de pecuarista, as atividades produtivas são as mesmas que já realizava na condição de agregado, produzindo queijo e comercializando gado de corte e outros pequenos animais, como porcos, perus etc. É essa uma das origens do pecuarista familiar na região, que também se origina da fragmentação de propriedade a partir de processos de sucessão familiar, de descapitalização de muitos pecuaristas e da chegada de imigrantes, que se estabelecem na região (Ambrosini, 2007).

Com a chegada do século XX e o desenvolvimento trazido com o aumento do comércio entre as cidades e as regiões, assim como a abertura de estradas, ferrovias e rodovias, além da chegada do transporte motorizado, deram um fim à atividade tropeira e ao comércio de queijo sobre o lombo de mulas. No entanto, a lógica de reprodução social adotada pelos pecuaristas familiares produtores de Queijo Serrano mantém muitas semelhanças com a daquela época. Indicador disso é que, na atualidade, o queijo –  vendido para consumidores locais, pequenos estabelecimento comerciais ou atravessadores, para comercialização em Caxias do Sul ou em Santa Catarina – tem garantido para as famílias produtoras a renda que permite o acesso aos alimentos. Se no passado o Queijo Serrano era objeto de troca para obter os alimentos não produzidos na região, na atualidade é através da renda gerada em sua comercialização que é obtido o abastecimento familiar. A produção de queijo, que no auge da atividade da pecuária de corte extensiva era apenas um subproduto da pecuária de corte, relegada às famílias de agregados das fazendas, tornou-se, na atualidade, uma das principais atividades econômicas dos pecuaristas familiares e, em muitos casos, representa mais da metade da renda familiar.

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No entanto, apesar de toda sua importância econômica, social, cultural e histórica, a comercialização de Queijo Serrano é realizada, em grande medida, à margem dos canais formais de comercialização. Tendo seus processos de produção considerados inadequados pela legislação sanitária vigente, os produtores vivem sob constante ameaça de apreensões e multas.

Sabemos que a qualidade sanitária de um produto é direito de todo consumidor, mas é evidente que as regulações sanitárias vigentes não respeitam a diversidade, a história e o caráter cultural de produtos tradicionais (Black, 2005). Moldados sobre o estigma da estandardização de processos e produtos, essas regulações se chocam com a diversidade do saber-fazer e de processos de produção tradicionais. Apesar disso, vários estudos apontam que existe, entre os consumidores, uma demanda crescente de produtos carregados de identidade, cultura e tradição. Assim é que se coloca a urgência de combinar as normas fiscais e sanitárias e o saber-fazer tradicional em padrões que possibilitem a reprodução social dessas famílias ao mesmo tempo que garantam a qualidade do produto ao consumidores.

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Referências

AMBROSINI, Larissa Bueno. Sistema Agroalimentar do Queijo Serrano: estratégia de reprodução social dos pecuaristas familiares dos Campos de Cima da Serra – RS. 2007. 192f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Rural) – Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007.

BLACK, Rachel Ede. The Porta Palazzo farmers’ market: local food, regulations and changing traditions. Anthropology of Food, 4, 2005.

MENASCHE, Renata; KRONE, Evander Eloí. Queijo Serrano: identidade e cultura nos Campos de Cima da Serra. In: REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL, VII, 2007, Porto Alegre. Anais… Porto Alegre: UFRGS, 2007.


* Evander Eloí Krone  é Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS), integrande do Grupo de Estudos e Pesquisas em Alimentação e Cultura e da equipe – constituída por técnicos da EMATER/RS-ASCAR e por pesquisadores da Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (FEPAGRO) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – que desenvolve um projeto que busca subsidiar o reconhecimento do Queijo Artesanal Serrano.


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* Nota da Editora: O tema dos queijos artesanais é particularmente caro ao movimento Slow Food, que assina o Manifesto em Defesa dos Queijos de Leite Cru. Na Europa, essa briga é já antiga (ver, nesta Coluna, artigo que apresenta os dilemas dos produtores de um queijo artesanal catalão). Mas, nos últimos anos, temos presenciado iniciativas que buscam fortalecer queijos artesanais em inúmeros pontos da América Latina. Um caso exemplar, no Brasil, é referente ao ao Queijo Artesanal de Minas, recentemente reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN como patrimônio brasileiro (a respeito, ver artigo publicado nesta Coluna). E, para mencionar outro caso, podemos citar o queijo produzido nas montanhas e vales que circundam um vulcão na linda região de Santa Cruz de Turrialba, Costa Rica. Ali, estudos (ver, por exemplo, o artigo de L. Granados e C. Álvarez) vêm dando suporte à ação da Asociación de Productores Agropecuarios de Santa Cruz de Turrialba – ASOPROA, que, com apoio de movimentos como o Slow Food e amparo de órgãos como o Consejo Nacional de Producción – CNP, reivindica a denominação geográfica de origem para o produto que está associado às tradições daquele lugar e daquela gente: o Queijo Artesanal Turrialba (conheça um pouco mais a respeito visitando o site da Feira do Queijo, que acontece no final de agosto).

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