Carne manteada de bode

Arca do Gosto // Embutidos e produtos à base de carnes

Carne retalhada de bode // Não aplicável // Região Nordeste do Brasil // Comunidades Tradicionais de Fundo de Pasto

A região Nordeste do Brasil abriga 93% do rebanho brasileiro de caprinos (bodes, cabras e cabritos) com 9,09 milhões de cabeças, tendo o estado da Bahia o maior rebanho do país, somando 28,9 % da produção nacional. Os primeiros relatos da presença de caprinos e ovinos na região Nordeste datam do período colonial, trazidos pelos portugueses. Essa região foi a porta de entrada dos animais no país que, ao longo dos anos, foram selecionados pelos desafios naturais como a alimentação nativa, chuvas limitadas e inexistência de manejo, dando espaço para práticas e técnicas tradicionais. 

Com clima predominantemente semiárido, essa região tem uma precipitação anual em torno de 800 milímetros. Nos anos mais secos, chega a apenas 200 milímetros por ano. As chuvas dividem o ano em apenas dois períodos, o chuvoso, geralmente entre janeiro e maio, e o seco que ocorre entre junho e dezembro. Esse indicadores, no entanto, têm sofrido variações a cada ano por causa das crises climáticas no planeta. A temperatura média anual no semiárido varia de 25°C a 30°C e sua vegetação predominante é a Caatinga, nome que significa “mata ou floresta branca” na língua tupi, dado a seu aspecto esbranquiçado dos troncos das árvores durante a estação seca, quando as plantas perdem suas folhas.

Criação caprinos pé-duro em sistema Fundo de Pasto na Caatinga. Foto: Revecca Tapie

A adaptação dos caprinos a esse ambiente fez com que a população de animais aumentasse, formando todo um sistema produtivo, firmando povos e comunidades tradicionais e transformando a caprinocultura numa das principais atividades econômicas, especialmente, em comunidades tradicionais de Fundo de Pasto do Território do Sertão São Francisco, extremo norte do estado da Bahia. Nessas comunidades residem populações rurais do semiárido próximas uma das outras, tendo um certo grau de parentesco entre os habitantes e que compartilham as terras de maneira comunitária para o cultivo ou criação de animais de pequeno porte. A formação dessas comunidades se deu por um processo histórico decorrente aos ciclos econômicos na época da colonização do Brasil, momento em que os bandeirantes viajavam seguindo as águas do rio São Francisco para capturar indígenas para o trabalho de cultivo de cana-de-açúcar no litoral da Bahia e conquistar terras no interior para a criação de fazenda de gados, além de indígenas, mestiços, foragidos da polícia e negros escravizados em fuga que iam se esconder no sertão. 

Os animais são criados em pequenas escalas pelas famílias de Fundo de Pasto. Em média, cada família tem 50 cabeças animais, com manejo reprodutivo predominantemente de monta natural. No rebanho, predomina o pé-duro, ou sem raça definida (SRD), oriunda da miscigenação de várias raças. Porém existem famílias que mantêm em seu rebanho as raças locais ou grupos genéticos selecionados naturalmente ao longo dos anos, como o moxotó, santa inês, canindé, rabo largo. A vegetação Caatinga é a principal fonte alimentar para os rebanhos, mas, no período seco, as famílias buscam outras alternativas para alimentação dos animais como a leucena, a palma forrageira, a melancia brava, o sorgo, entre outras plantas forrageiras nativas ou exóticas adaptadas ao semiárido.

Salga tradicional da manta para exposição e secagem ao sol. Foto: Revecca Tapie – Comunidade Goiabeira, Juazeiro – Bahia

Além de principal atividade econômica das famílias de Fundo de Pasto, a  caprinocultura é a marca da cultura alimentar local, tendo na carne de bode manteada um modo tradicional de preparo e consumo desses animais. Essa carne pode ser definida como um produto cárneo salgado, proveniente da desossa e manteação de carcaças ovinas e caprinas inteiras, submetida às etapas de salga seca e secagem. Atualmente existem várias ameaças para que a carne de bode manteada desapareça. Primeiro, porque os manteadores estão se aposentando e os jovens não têm assumido a atividade; segundo, porque as normas sanitárias têm exigido que o abate dos animais ocorram em açougues regulamentados, porém, o deslocamento da roça para a estrutura formal é distante e custoso; e, por fim, a chegada de novos cortes aos caprinos e ovinos como pernil, paleta, lombo, carrê. 

A conservação da carne animal pela salga seguida de secagem, após o abate, se deu principalmente pela conserva, já que a quantidade era superior ao consumo da família, ou também pela prática de trocas por outros alimentos entre as famílias. Registros mostram que a salga para conservar produtos cárneos e pescados teve origem entre os colonizadores portugueses, que já utilizavam a técnica e secagem para alimentação dos desbravadores. 

No Brasil, particularmente no Nordeste, o processo de salga das carnes deu origem a diversos produtos, como o charque, a carne de sol e a manta caprina. A manta de bode é feita com caprinos e, dependendo do território, é usado o pé-duro, como na cidade de Juazeiro, ou santa inês, dorbe ou boer, como na cidade de Andorinhas, ambas na Bahia. O retalhamento ou a desossa e a manteação é uma etapa fundamental que caracterizam e fazem parte da sua identidade. A carcaça inteira é desossada e os músculos são manteados, deixando uma fina camada de tecido muscular e apenas alguns ossos para sustentação da carne durante a secagem. Ao final, a carcaça fica toda aberta como um lençol, daí o seu nome “manta”. Esse processo auxilia a distribuição e penetração do sal, favorecendo a boa secagem e confirmando a técnica do manteador, pessoa que realiza o processo, de finalizar com uma carne aberta e lisa como uma manta.

O clima quente e de baixa umidade auxiliam o processo da secagem e contribuem para aumentar a vida de prateleira do produto. A comercialização é feita pelas cadeias curtas, com venda direta pelos produtores ou em feiras livres. A técnica é realizada em instalações simples e com utilização de ferramentas de fácil acesso, a partir de um conhecimento tradicional passado de pai para filho, alcançando em algumas famílias mais de três gerações. Segundo relatos locais, a diferença entre o processo de manteação nas cidades de Andorinha e Juazeiro é que, na primeira, nem todos os ossos são retirados como nas mantas feitas em Juazeiro. 

No ano de 2018, os vereadores da Câmara Municipal de Petrolina (PE) aprovaram o Projeto de Lei 135/2018, que declara a manta caprina e ovina, chamada de “Manta de Petrolina“, como patrimônio cultural imaterial da cidade. O objetivo é agregar valor ao produto com “Indicação de Procedência” ou “Denominação de Origem”, certificando uma qualidade. Porém essa iniciativa levantou dúvidas nos manteadores tradicionais, que relatam que a manta em questão é diferente da tradicional por utilizar carne de bode de raça. Dentre as carnes vermelhas, a caprina se destaca como fonte proteica de alto valor biológico, agregando vitaminas do complexo B, ferro, cálcio e potássio. Pode ser consumida assada, frita ou cozida, no café da manhã com cuscuz de milho ou no almoço junto com feijão verde ou pirão de mandioca. 

Indicação

Revecca Cazenave Tapie

Pesquisa

Revecca Cazenave Tapie

Revisão

Glenn Makuta, Lígia Meneguello, Pedro Xavier

Este produto compõe o projeto

Slow Food na defesa da sociobiodiversidade e da cultura alimentar baiana

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