O cenário atual do país e mundo, imposto pela pandemia de Covid-19, tem mudado a rotina das pessoas, a dinâmica econômica e gerado preocupação com o abastecimento alimentar. Os distanciamentos, quarentenas e isolamentos sociais, necessários para controlar a contaminação, têm gerado impactos sobre a comercialização de alimentos e, por consequência, na redução das fontes de renda para famílias agricultoras, com a suspensão das feiras locais.
Outra preocupação é o aumento dos preços dos alimentos nos mercados convencionais, causando ainda mais agravamento da fome, especialmente nas cidades. Dessa maneira, o país volta a colocar o direito humano à alimentação e nutrição adequada em ameaça, depois de, ao longo de 15 anos, retirar 35 milhões de pessoas da situação de extrema pobreza, saindo em 2014 do Mapa Mundial da Fome, de acordo com o relatório O Estado da Insegurança Alimentar no Mundo, da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
Como então é possível pensar em saúde numa situação de insegurança alimentar? Essa pergunta remete às histórias de tempos difíceis para populações rurais do semiárido, em períodos de longas estiagens, numa época em que não havia políticas públicas de acesso à água para consumo humano nem para produção de alimentos.
Essas memórias foram trazidas durante as primeiras atividades do projeto Slow Food na Defesa da Sociobiodiversidade e da Cultura Alimentar Baiana realizadas na região do Brejo Dois Irmãos, em Pilão Arcado, Bahia. A proposta era levantar produtos da cultura alimentar local para serem inseridos na Arca do Gosto, catálogo mundial que identifica, localiza, descreve e divulga alimentos, sabores e técnicas de produção quase esquecidos ou ameaçados pela padronização alimentar e/ou alterações da biodiversidade local.
Como resultado, os moradores relataram uma diversidade de produtos que garantiam a alimentação das famílias no passado. A superação da fome, o acesso às políticas sociais de transferência de renda e à facilidade de compra e de preparo de alimentos industrializados vendidos nos mercadinhos e quitandas locais fizeram com que muitos dos hábitos alimentares tradicionais ficassem para trás. De acordo com Dona Romana de Souza, uma das moradoras mais antigas da comunidade, são muitas coisas que comiam antes e que não comem mais: “Aqui a gente comia o pau brabo (tronco de uma árvore , que tiravam do mato e batiam até virar farinha). Tinha a sopa de bredo e de broto da abóbora. A gente também pegava os cachos de carnaúba, descascava pra tirar um coquinho que tem dentro e cozinhava que nem faz com o milho e fazia canjica. É gostoso, mas dá muito trabalho, porque tem que ferver muitas vezes. Naquele tempo era por causa da fome. O povo aqui nunca mais quis comer essas coisas de novo porque chegou ‘coisa boa’ (se referindo às políticas sociais de transferência de renda), mas eu não me esqueço de nada disso não, não esqueço de nada do que passei”, relata. A agricultora lembra ainda que antes o óleo de coco e azeite de buriti “bem apurado” eram as gorduras utilizadas. Hoje, o óleo de soja está na maioria das casas da comunidade.
Para Revecca Tappie, facilitadora do projeto, “o problema da perda dos hábitos alimentares, é perder o que é da nossa cultura, dos nossos antepassados. Sem isso a gente perde a nossa biodiversidade e ameaça a segurança alimentar. Quando (re)descobrimos e nos (re)apropriamos desses alimentos tradicionais, valorizamos e apoiamos a economia local, e as pessoas voltam a consumir porque percebem o quanto isso é importante para a manutenção da cultura alimentar local”.
Entre os alimentos resgatados pela comunidade estão: mugunzá de jatobá, que, segundo os moradores serve para remédio, quixaba, melancia brava, jacuba, tapioca da batata de sucupira, fubá de semente de melancia, coalhada de leite de vaca, fubá de gergelim, fava, fubá da castanha de caju, óleo e doce de buriti, rapadura, farinha de mucuna, mel, óleo de pequi, salada de bredo, fubá de coco, fubá de puba, mandubim (um tipo de amendoim), vinagreira, além das frutas puçá, araçá, goiaba, manga, xichá.
De acordo com documentos como o Guia Alimentar para a População Brasileira (2014), escolher alimentos industrializados e ultraprocessados em detrimento daqueles produzidos pelas próprias famílias não é a melhor opção. Os alimentos ultraprocessados impactam negativamente na saúde das populações e na cultura local. Além disso, são provenientes de sistemas agroalimentares corporativos e de monoculturas, que se mostram incapazes de lidar com a crise da pandemia e atender a população na garantia da sua segurança alimentar.
A depender do modo de produção, esses alimentos também geram desigualdades sociais, exploração de mão de obra e ameaças à biodiversidade, como desmatamento, poluição e uso irregular de águas e do solo, impactando, sobretudo, nas crises climáticas. Há evidências científicas que associam a origem da pandemia ao sistema agroalimentar industrializado e intensivo, especialmente na comercialização de alimentos de origem animal. Por isso, valorizar e consumir produtos da agricultura familiar fortalece seu sistema de produção e de distribuição dos alimentos, promovendo saúde, justiça social e protegendo o ambiente. Como bem lembra Dona Romana, “Eram tempos sofridos, mas aqui não tinha essas doenças que tem hoje”.
A nutricionista e pesquisadora, Camilla Almeida, destaca que, além da grande variedade local de alimentos com alto potencial nutritivo, há o fato de que a produção agroecológica preserva essas propriedades. “A agricultura baseada na utilização de agrotóxicos gera alimentos menos nutritivos, uma vez que a maior parte dos compostos bioativos de propriedade anti-inflamatória, antioxidante e antimicrobiana é produzida pelas plantas como forma de defesa contra predadores. O cultivo de alimentos com a utilização de defensivos agrícolas externos faz com que os vegetais não desenvolvam de forma plena as próprias defesas, resultando em alimentos com menor teor de fitoquímicos essenciais para a saúde”, explica.
Camilla, que é mestre em Alimentos, Nutrição e Saúde pela Universidade Federal da Bahia, e doutoranda em Patologia pela Fiocruz Bahia, aponta que a vasta lista dos alimentos disponíveis listados pela comunidade, por vezes vistos pela população local apenas como alternativas para sanar a fome em épocas de insegurança alimentar, não só inclui fontes de nutrientes importantes como poderia representar um cardápio completo para toda a população. “Inclui ótimas fontes de energia, carboidratos minimamente processados, proteínas, gorduras boas e compostos anti-inflamatórios e antioxidantes distribuídos entre alimentos de todos os grupos – cereais, leguminosas, verduras, legumes, frutas e sementes oleaginosas – tudo que a alimentação humana precisa. O arroz pode ser substituído pelo bredo, o feijão pela fava e mandubim, o óleo de soja e o azeite de oliva pelos óleos de buriti e pequi. Não há alfaces, mas há vinagreira. Quem precisa de batata onde se tem mandioca e todos os seus derivados? As amêndoas, nozes e macadâmias dão lugar à castanha de caju e ao coco, e, no lugar, das frutas nobres e convencionais existem frutos muito mais ricos em vitaminas”, ressalta.
Almeida lembra ainda que o açúcar refinado pode ser perfeitamente substituído pela rapadura ou pelo mel. “Mesmo que não haja grande disponibilidade de animais para consumo, não há risco de deficiências nutricionais, pois os vegetais disponíveis são ricos em proteínas, cálcio e ferro. A “lista da feira” pode não ser encontrada nas gôndolas dos grandes mercados, mas estar nos quintais, onde o resgate da cultura alimentar faz ‘descascar mais e desembalar menos'”, conclui a nutricionista.
Ter uma alimentação adequada e saudável todos os dias é um direito humano básico e isso vai além da ingestão de nutrientes. Considera também as dimensões culturais, sociais e ambientais das práticas alimentares. Para Nathan Dourado, também facilitador do projeto, a crise gerada pela pandemia do novo coronavírus traz a possibilidade de se olhar para as práticas tradicionais de povos em busca de alternativas para garantir a qualidade da alimentação.
Dourado acrescenta como possibilidade a retomada das práticas de troca não monetárias que recupera o valor de uso da produção diversificada e estimula a solidariedade dentro da comunidade, diante do atual cenário de distanciamento social, redução das idas aos mercados locais e o aumento nos preços dos alimentos. “Lembrando o professor Boaventura de Sousa Santos, a crise é uma oportunidade para empreender a valorização de outras experiências humanas com saberes tradicionais e capacidades locais que foram deslegitimadas pela universalização colonizadora do sistema capitalista – baseado numa visão de mundo antropocêntrica, mecanicista e patriarcal – que nos distanciou da natureza. A lógica do capital, amparada pela ideologia do progresso/desenvolvimento, buscou transformar camponeses autossuficientes em consumidores e produtores de mercadoria, mas agora apresenta seus limites e contradições. Desse modo, o tradicional, que antes era visto como sinônimo de atraso, passa a ser encarado como estratégia para lidar com as crises contemporâneas”, conclui.
Saiba mais sobre o Potencial nutritivo dos alimentos
Informação fornecida por Camilla Almeida
Jacuba – Trata-se de um tipo de pirão feito de farinha de mandioca com rapadura ou açúcar. Em alguns locais a mistura também pode incluir café. A mandioca e todos os seus derivados são considerados excelentes fontes de energia para o organismo. Fubá de puba – Uma das formas de consumo da mandioca. A puba é a massa da mandioca fermentada, usada para preparo de bolos e pães. Além de ser fonte energética, o processo de fermentação agrega valor nutritivo ao alimento, que passa a ter melhor potencial digestivo e maior teor de vitaminas do complexo B. Rapadura – Alimento com propriedade adoçante e energética, também representa uma excelente fonte de ferro de origem vegetal (não-heme), que está associado à prevenção de anemias e menor risco cardiovascular, em contraposição ao ferro de origem animal (heme), que vem sendo associado ao desenvolvimento de doenças inflamatórias. Mel – Tem propriedades adoçantes e energéticas, alto potencial antimicrobiano e fonte considerável de fibras prebióticas, que atuam promovendo crescimento das bactérias probióticas (benéficas) no intestino. Farinha de mucuna – A mucuna (Mucuna pruriens) é uma leguminosa comumente consumida na forma de farinha. É rica no aminoácido tirosina, usado para produção de dopamina pelo organismo. A dopamina é um neurotransmissor que atua no sistema nervoso central influenciando nas emoções, aprendizado, humor e atenção, além de controlar o sistema motor. A deficiência de dopamina pode levar a doenças como Parkinson e esquizofrenia. Fubá de semente de melancia – A semente da melancia é uma excelente fonte de minerais como ferro, zinco e magnésio. Vem sendo estudada como forma de reposição natural desses minerais em populações com deficiência, demonstrando resultados promissores. Fubá de gergelim – O gergelim é uma semente oleaginosa conhecida por ser fonte de gorduras poli-insaturadas importantes para o organismo. Outra propriedade importante é o alto teor de cálcio, fundamental para a saúde óssea. Fubá de castanha de caju – A castanha de caju é uma importante fonte de proteínas, além de ser rica em gorduras poli-insaturadas com potencial anti-inflamatório. Outro nutriente de destaque é o magnésio, antioxidante protetor da saúde cardiovascular. Fubá de coco – O mesocarpo ou “carne” do coco é rico em ácido láurico, um tipo de gordura de rápida absorção que representa uma excelente fonte de energia para o corpo, além de ter potencial anti-inflamatório e contribuir para o aumento dos níveis de HDL-colesterol, conhecido como “bom colesterol”. Óleo de buriti e de pequi – O buriti (Mauritia flexuosa) e o pequi (Caryocar brasiliense) são frutos conhecidos por serem fontes de ácido oleico (ômega-9), um tipo de gordura monoinsaturada com potencial anti-inflamatório também encontrado nas olivas. Os óleos de buriti e pequi podem ser considerados tão benéficos quanto o azeite de oliva. Além disso, são fontes de carotenoides com atividade antioxidante e antimicrobiana, atuando também na saúde da microbiota intestinal. Coalhada de leite de vaca – Apesar do potencial inflamatório e dos fatores anti-nutricionais do leite de vaca, alguns dos seus derivados produzidos por processos de fermentação e coagulação podem ter propriedades nutricionais interessantes, como o menor teor de lactose e a presença de bactérias probióticas (benéficas), em especial a produção artesanal desses derivados. Madubim – O mandubim é um tipo de amendoim local, rico em proteína, cálcio e gorduras poli-insaturadas importantes para o organismo. Pode ser consumido torrado, na forma de pasta, “leite”, manteiga ou óleo. Fava – A fava (Vicia faba) pode ser considerada um tipo de feijão e, assim como toda leguminosa, representa uma boa fonte de proteína e ferro (não-heme). Os diferenciais estão no alto teor de magnésio e triptofano, nutrientes essenciais para produção dos neurotransmissores serotonina e da melatonina, que fornecem sensação de felicidade e boa qualidade do sono. Vinagreira – As folhas da vinagreira (Hibiscus sabdariffa) podem ser usadas na forma de saladas e conferem um sabor azedinho delicioso. As flores, comumente conhecidas como hibisco, são usadas para o preparo de chá (infusão). São importantes fontes de vitamina C e possuem efeito benéfico no controle do açúcar do sangue. Salada de bredo – O bredo, também conhecido como caruru (Amaranthus viridis) tem folhas e sementes comestíveis. No caso das sementes, consideradas pseudocereais que podem substituir o arroz, o destaque é para o alto teor de proteínas, peptídeos bioativos e polifenóis antioxidantes, como miricetina, catequinas, quercetina e rutina. Essas substâncias são estudadas como potentes protetores da saúde cardiovascular e preventivos de câncer. Quixaba – Fruto doce e comestível, a quixaba (Sideroxylon obtusifolium) é usada tanto para alimentação humana quanto para animais em épocas de seca. Possui efeito anti-inflamatório e antifúngico, sendo promissor no tratamento da infecção por Candida albicans. Puçá – Fruta estudada por seu potencial de proteção para o estômago, a puçá (Mouriri grandiflora) pode ser usada inclusive nas infecções por Helicobacter pylori, a bactéria causadora da gastrite. Araçá – Semelhante a uma goiaba, porém menor e mais azedinha, o araçá (Psidium cattleianum) possui fitoquímicos antioxidantes e anti-inflamatórios importantes para a proteção cardiovascular. Xixá (ou chichá) – Fruto ancestral, o xixá (Sterculia striata) possui alto teor de ferro (não-heme), manganês e cobre, minerais antioxidantes. Outros compostos importantes são o ácido oleico (ômega-9), beta-sitosterol (reduz os níveis de colesterol do sangue), beta-tocoferol (um tipo de vitamina E) e ácido elágico, também de atividade antioxidante. |
Conheça o projeto Slow Food na Defesa da Sociobiodiversidade e da Cultura Alimentar Baiana
O projeto é fruto de uma parceria entre a Associação Slow Food do Brasil e o Pró-Semiárido, executado pela Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR), mediante acordo de empréstimo com o Fundo Internacional Agrícola (FIDA). A iniciativa teve início no mês de novembro do ano passado (2019) e objetiva identificar novos produtos para Arca do Gosto, inserir novas Comunidades na rede Slow Food Brasil, bem como articular e fortalecer as chamadas Fortalezas Slow Food da Bahia. A ação envolverá famílias agricultoras e extrativistas dos territórios de atuação do Pró-Semiárido. Acompanhe o projeto no site do Slow Food Brasil e no Facebook. |