O filme Chocolate, lançado em 2001 e dirigido por Lasse Hallstron, aborda a história de Vianne Rocher que, acompanhada de sua filha de seis anos, muda-se para uma pequena cidade católica do interior da França, com o propósito de abrir uma loja de chocolates em plena época da quaresma. Diante da novidade, a população fica curiosa em conhecer o local, mas, sob forte influência da religião e permanente vigilância do prefeito da cidade (o Conde Paul de Reynaud, católico fervoroso), é levada a reprimir sua vontade e desejo de consumir o produto tão tentador quanto profano.
Conforme o tempo passa na pequena cidade de Lansquenet-sous-Tannes, ainda que Vianne conquiste a confiança e amizade de alguns de seus moradores, em alguma medida permanece sendo uma estranha. Com a chegada de um novo personagem, Roux, um cigano que viaja pelo rio, alguns habitantes da cidade, até então acostumados a submeter-se às restrições religiosas, permitem-se desfrutar de prazeres e alegrias, colocando à prova os ensinamentos católicos de penitência. Dadas as diferenças em seus hábitos de vida, Vianne, sua filha e Roux são muito criticados pelo Conde, que se utiliza dos sermões da igreja para incitar a população a rejeitá-los e expulsá-los da cidade, a fim de restaurar a ordem e a decência. Sua retórica identifica o chocolate como símbolo do pecado e Vianne como deturpadora das condutas morais.
Consumir chocolate em plena época da quaresma é, naquele contexto, considerado inadmissível. Tal como propõe Carneiro (2005), o ato alimentar se reveste de conteúdos simbólicos, cujos significados nem sempre são interpretados pelas culturas que o praticam, mas cumpridos como preceitos, diante dos quais não são necessárias explicações. Assim, no contexto em que transcorre a história aqui referida, a identidade alimentar conjuga-se à identidade religiosa, tornado-se unívoca.
Cabe aqui tomar as reflexões de Mary Douglas (1991) e, à luz do contexto no qual o filme Chocolate se desenvolve, indagar: por que o consumo de determinado alimento, no caso o chocolate, simbolizaria o pecado e sua restrição a pureza? Longe de pretender esgotar as possíveis respostas e interpretações, o filme aponta o hedonismo como algo demoníaco e, portanto, tudo que possa estimular esse sentimento deve ser evitado, para não atrair o perigo. Dentre todos os pecados, a gula está em destaque, pois o excesso de comida e bebida traduz o apego ao prazer. Por outro lado, negar esse prazer durante o período destinado às reflexões e penitências significaria a busca da graça divina, pois o ato da privação do consumo de algo tão gostoso como o chocolate, significa purgar o pecador e purificá-lo, aproximando-o de Deus e de suas bênçãos.
Nesse caso, considerando os elementos discutidos acima, sobre o poder coercitivo da religião, a representação do chocolate como pecado se concretiza, entre boa parte dos moradores da localidade em que transcorre a história, tornando-se mais proeminente em seu líder, o Conde Paul de Reynaud. No entanto, ainda que a religião exerça forte influência nas práticas alimentares, é interessante notar que neste filme o chocolate oferece representações distintas para cada personagem.
Para a personagem principal, Vianne Rocher, o chocolate representa amor, pois sua produção trata de uma tradição ensinada por sua mãe e culturalmente presente no povo indígena ao qual pertencia e para quem o chocolate era considerado um alimento sagrado.
Para Roux, o cigano, excluído da sociedade devido a hábitos de vida pouco convencionais para a comunidade onde o filme se passa, o chocolate representa ousadia e rebeldia. Ao tornar-se amigo de Vianne, ele mostra à que seu modo de vida não está submetido a preceitos dessa sociedade, afrontando ideologias tão fortemente difundidas pela igreja local.
Para Josephine Mosca, outra personagem do filme, o chocolate representa liberdade, pois, a partir do momento em que estabelece amizade com Vianne e passa a trabalhar na loja de chocolates, sua vida muda radicalmente, na medida em que se liberta das torturas que seu marido lhe infligia, bem como da pressão exercida pela igreja para manter o casamento a qualquer custo.
Já para a personagem Armande Voizin, chocolate remonta ao sentimento de amparo e afeto, pois a solitária senhora, que vivencia um relacionamento conflituoso com a filha e com o neto, vê em Vianne uma amiga com quem pode partilhar seus problemas. É assim que a doçura desses sentimentos se sobrepõe ao perigo que o açúcar lhe traz, dada sua condição de diabética. A amargura transformada em amabilidade a reaproxima de seu neto e de sua filha.
Diante de representações tão distintas sobre o mesmo alimento, o filme Chocolate leva a refletir. Observa-se que a moral e os valores estabelecidos pela sociedade influenciam o modo de vida dos indivíduos e suas representações sobre determinados comportamentos ou hábitos e restrições alimentares. Contudo, é válido salientar que visões etnocêntricas e estritas muitas vezes dificultam a compreensão das diferentes culturas, levando ao desenvolvimento de preconceitos em relação ao que é estranho ou não familiar. O consumo ou não de um mero alimento pode significar tanto a pureza, o amor, a liberdade, quanto o perigo, o pecado e a imoralidade. No embate de culturas e representações, estão as subjetividades, que permeiam as escolhas e comportamentos alimentares e a importância de “des”naturalizar essa teia.
Referências
CARNEIRO, Henrique Soares. Comida e sociedade: significados sociais na história da alimentação. História: Questões & Debates. Curitiba, n. 42, p. 71-80, 2005.
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo: ensaio sobre a noção de poluição e tabu. Rio de Janeiro, 1991.
* Carmine Marcon Piano ([email protected]) e Suelen Regina Lothermann ([email protected]) são estudantes e Rozane Marcia Triches ([email protected]) é professora do Curso de Nutrição da Universidade Federal da Fronteira Sul