Tomar a produção fílmica como campo etnográfico pode disparar uma infinidade de questões e temáticas que falam do cotidiano das pessoas, da vida social, da manifestação das diversas culturas presentes no mundo em que vivemos.
Como água para chocolate, filme mexicano do diretor Alfonso Arau, produzido no ano de 1992, é um filme que convida à reflexão. A partir da comida e da relação que os personagens estabelecem com a mesma, é possível perceber e conhecer os modos de vida do lugar em que se desenvolve a narrativa. Quem nos conta a história é a sobrinha-bisneta de Tita (personagem principal do filme), através de um livro de receitas que é passado através das gerações de mulheres da família.
I parte – A história de amor
O filme mostra a vida de uma família composta por três irmãs e a mãe viúva, residentes em uma pequena fazenda no México, no início do século XX, em um contexto de guerra (Revolução Constitucionalista).
Tita, a irmã mais nova, nasce na cozinha, onde passa toda a vida entre aromas e sons dos alimentos preparados por Nacha, a cozinheira da família. Era nesse local da casa que as meninas – e especialmente Tita – sentiam-se acolhidas e amadas, muito mais que no convívio com a mãe. Em função disso, a partir dos ensinamentos de Nacha, Tita desenvolve gosto por preparar os alimentos com carinho e dedicação, transformando-os em comida. Através da comida, Tita proporcionava afetos e sensações para aqueles que tinham o prazer de desfrutar seus maravilhosos pratos.
Logo no início do filme, uma fala descreve o quanto era carregada de significados a comida preparada por Tita: "O ruim de chorar quando se pica cebola não é o fato de chorar, e sim que, às vezes, não se consegue parar…". Essa fala explicita uma profunda entrega ao ato de cozinhar: o envolvimento de Tita era tão intenso, que emoções de toda ordem podiam ser acionadas pelo simples ato de cortar cebolas.
O desenrolar da história se dá a partir do romance proibido entre Tita e Pedro, um jovem do povoado. Por ser a filha mais nova, Tita é destinada a passar a vida cuidando de sua mãe. Assim, é negada a ela a possibilidade de casar-se ou dedicar-se a outra atividade.
O destino imposto a Tita a conduz a uma profunda tristeza, que seria intensificada com o casamento de Pedro com sua irmã mais velha, Rosaura. Pedro aceita esse casamento – naquele lugar, assim como em outros tantos povoados rurais, casamento era entendido como negócio de família – por entendê-lo como única possibilidade de ficar mais perto de sua amada, enquanto Tita, sem compreender bem a decisão de Pedro, mergulha num "mar de tristezas", por entender que perdera de uma vez por todas o grande amor de sua vida.
Diante disso, é na comida preparada por Tita que se manifestam e são transmitidos os sentimentos, angústias e desejos que ela traz contidos, devido ao amor proibido que sente por Pedro. Isso ocorre já no casamento. Ao preparar o bolo do casamento, tomada por profundo sentimento de tristeza, Tita se põe a chorar, deixando cair suas lágrimas sobre a massa do bolo. A profunda tristeza de Tita, transmitida para a massa do bolo, causaria ânsia de vômito nos convidados. Já em outra ocasião, o prato de codornas ao molho de pétalas de rosa, preparado com as flores que Tita ganhara de Pedro, transmitiria a quem o ingerisse a sensualidade e volúpia daquela paixão.
Anos mais tarde, quando Rozaura afirma reservar para sua filha, Esperança, o mesmo destino que sua mãe reservara a Tita – cuidar da mãe até sua morte -, ela revolta-se em solidariedade à sobrinha e, a partir daí, Rozaura passa a sofrer de problemas digestivos, tornando-se obesa, flatulenta e com mau hálito e vindo a falecer por complicações gastro-intestinais.
Será somente após o casamento de Esperança que Tita e Pedro decidem ser chegado o momento para ficarem juntos. No entanto, depois de tanto tempo contendo sentimentos tão intensos, quando o amor de uma vida inteira é permitido e pode, finalmente, ser vivenciado, eles acabam sendo consumidos pelo fogo da própria paixão.
II Parte – A dimensão comunicativa dos alimentos
Amon e Menasche (2008) ressaltam a dimensão comunicativa da comida e das práticas de alimentação, através das quais se pode contar histórias e compartilhar mais do que o alimento em si. As autoras citam Hauck-Lawson (1992, 1998) para abordar a comida como um modo de comunicação, a partir do conceito de voz da comida, trazendo assim, o caráter dinâmico, criativo, simbólico e singular pelo qual a comida serve de canal à comunicação. A comida constituiria, assim, um "veículo para manifestar significados, emoções, visões de mundo, identidades, bem como um modo de transformar, pela resolução de conflitos, realização de mudanças, desistências" (Amon e Menasche, 2008, p.17). No filme, essa dimensão comunicativa da comida pode ser percebida, por exemplo, quando Tita prepara codornas ao molho de rosas. Nesse prato, ela coloca todo seu amor por Pedro, gerando paixão em todos que degustam a iguaria à mesa.
A beleza de Como água para chocolate está justamente nos acontecimentos que ocorrem na cozinha da casa e na mesa, onde todos os moradores do rancho partilham as refeições, ou nas festas, em que convidados chegam para saborear os pratos preparados por Tita, servidos em uma bonita mesa ao ar livre. Neste contexto, Maciel (2001) aborda o sentido da comensalidade (o "comer juntos"), que transforma o ato alimentar em um acontecimento social, fazendo desse momento uma forma de reforçar a coesão do grupo, pois ao partilhar a comida, partilham-se sensações. Assim, os convidados dos banquetes de Tita ao indagar o segredo de suas receitas, escutavam como resposta: "tens que fazer com muito amor".
O filme Como água para chocolate nos faz pensar sobre como valores e regras, que nos são impostos culturalmente, determinam a vida de cada um. Em um contexto de impedimento de viver seu amor, a comida tomou um papel importante. Preparando alimentos, Tita liberta os sentimentos aprisionados e pode também sentir prazer através do ato de comer, uma vez que outros prazeres da vida ela não podia desfrutar. Também pela comida, Tita pode transmitir algo que lhe era negado manifestar, mas que cozinhando, o faz. Pela comida ela amou Pedro, profundamente.
Referências
Amon, D.; Menasche, R. Comida como narrativa da memória social . Sociedade e cultura, Goiânia, v. 11, n. 1, p. 13-21, 2008.
Maciel, M. E. Cultura e alimentação ou o que tem a ver os macaquinhos de Koshima com Brillat-Savarin? Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, p. 145-156, 2001.
* Lidiane Fernandes da Luz é Mestranda em Desenvolvimento Rural pelo PGDR/UFRGS
* Veridiana Soares Ribeiro é Mestranda em Geografia pela FURG