Gado Curraleiro-Pé-Duro

Arca do Gosto // Raças e espécies animais

Gado Curraleiro-Pé-Duro // Bos taurus taurus // Fundos e Fechos de Pasto

O Gado Curraleiro-Pé-Duro (Bos taurus taurus) é um animal, cuja origem está ligada à história de colonização do Vale do Rio São Francisco pelos portugueses, no início do século XVII. Sempre acompanhada da  catequização e do genocídio dos povos indígenas da região, a ocupação destas áreas pelos colonizadores se destinava à criação de gado em grandes latifúndios, também chamados de sesmarias na época. A região era conhecida como “Rio dos Currais” porque o rio servia de trilha para transporte e dispersão de gado do litoral para o sertão (ARRAES, 2013). Daí acredita-se que vem a denominação “curraleiro”. A denominação “pé-duro” deve-se ao fato destes animais possuírem cascos fortes. O fato é que a criação desse animal foi determinante para a ocupação e povoamento do Nordeste brasileiro.

Os portugueses trouxeram animais da espécie taurina, a maior parte deles  oriunda da Península Ibérica – alentejana, arouquesa, aaroosa, minhota e mirandesa – que tiveram que se adaptar para sobreviver no semiárido brasileiro,  dando origem às raças autóctones que temos hoje, com características específicas (FIORAVANTI et al., 2012). Ao longo dos séculos, esses bovinos foram criados em regime superextensivo, com um mínimo de cuidados sanitários e de alimentação, tendo que suportar pastagens secas, calor e outros fatores adversos, tornando-se animais extremamente rústicos e bem adaptados às condições ambientais desfavoráveis do semiárido brasileiro. Por isso, a raça curraleiro-pé-duro pode ser considerada como resultado do processo de seleção natural (MARIANTE; EGITO, 2002). 

Após a crise do ciclo econômico da cana-de-açúcar, entre os séculos XVI e XVII, o mercado interno de abastecimento de carne e couro foi entrando em decadência e, com isso, a maior parte das fazendas foram sendo abandonadas pelos seus donatários. Como consequência, os ex-trabalhadores, mestiços e descendentes de pessoas negras escravizadas e indígenas, passaram a formar comunidades nestas “terras soltas” e “sem dono” (devolutas). Desde então, as comunidades que se formaram passaram a criar um sistema produtivo, existente até os dias atuais, em que o bovino curraleiro-pé-duro é criado solto em meio à vegetação da Caatinga, no chamado regime de fundo e fecho de pasto pelos sertanejos, e no Cerrado, pelos geraizeiros, onde combinam a prática da agricultura de subsistência, pecuária e extrativismo vegetal.

Atualmente, este gado está presente em todo o sertão do Brasil, incluindo a região semiárida, no bioma Caatinga, e a maior parte do Cerrado, concentrando-se, principalmente, nos estados da Bahia, Piauí, Goiás, Tocantins, Maranhão, Ceará e Paraíba.  Estima-se que existam um pouco mais de 5.000 animais dessa raça. Além das comunidades tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto, são criados também por quilombolas e agricultores familiares de pequeno porte, em sistema de produção extensivo (cercados) ou superextensivo (completamente soltos), geralmente em pastagens nativas. 

Gado Curraleiro-Pé-Duro
Foto: Embrapa

Há pouco tempo os criadores acreditavam se tratar de duas raças diferentes, o curraleiro no Cerrado, do oeste baiano, Goiás, e Tocantins, e o pé-duro na Caatinga, norte da Bahia e Piauí. O curraleiro-pé-duro só foi reconhecido como raça local brasileira pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), em dezembro de 2012 (portaria nº 1.150), após a comprovação que o pé-duro e o curraleiro são a mesma raça. Desde então, a denominação oficial passou a ser “curraleiro-pé-duro”.  

A Embrapa iniciou um trabalho de recuperação dessa raça na década 1970, que ainda é feito hoje, por se tratar de um importante recurso genético, que se encontra ameaçado de extinção, devido à introdução dos zebuínos e os cruzamentos desordenados, na busca por aumento de produtividade (CARVALHO et al., 2013). Com isso, a instituição criou o Núcleo de Conservação in situ de Bovinos Curraleiro-Pé-Duro no município de São João do Piauí, onde os animais são mantidos no habitat onde se desenvolveram e foram submetidos à seleção natural. No estado do Piauí, a raça é considerada patrimônio histórico e cultural (decreto 13.765 de 20/07/2009). Outro exemplo de esforço para a conservação das raças locais brasileiras bovinas é a Rede Pró-Centro Oeste Caracterização, Conservação e Uso das Raças Bovinas Locais Brasileiras: Curraleiro e Pantaneiro, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A iniciativa tem o objetivo de consolidar uma rede interregional e interdisciplinar de pesquisa e transferência de conhecimento com a finalidade de caracterizar duas raças bovinas brasileiras locais em risco de extinção, curraleiro-pé-duro e pantaneiro (também presente Arca do Gosto), além de gerar dados para subsidiar o desenvolvimento de um modelo de exploração pecuária para os biomas Cerrado, Caatinga e Pantanal, utilizando essas raças, priorizando a conservação dos ecossistemas, a sustentabilidade e a diversidade genética. (FIORAVANTI et al., 2012).

Embora o preconceito e a desvalorização ainda pairem sobre essa raça devido ao forte lobby dos grandes produtores em favor das raças comerciais, acredita-se que o aumento da demanda da população por produtos diferenciados que tenham identidade territorial, criados em sistemas de produção de baixa dependência de insumos e com baixo impacto ambiental, pode resultar no reconhecimento do seu valor. De acordo com Felix et al. (2013, p.1716), as raças bovinas brasileiras “constituem um importante recurso genético para sistemas de produção sustentáveis de carne bovina nas diversas regiões do Brasil”, podendo integrar sistemas de produção agroecológicos e ocupar nichos de mercado específicos. No caso do curraleiro-pé-duro, a sua maior resistência a ecto e endoparasitas reduz a utilização de insumos químicos como carrapaticidas e medicamentos, fato que tem sido cada vez mais valorizado por consumidores de carne em todo o mundo e pode ser usado como um diferencial no mercado (FÉLIX et al., 2013; CARVALHO, 2002). 

O gado curraleiro-pé-duro é um animal rústico, de pequeno porte, extremamente adaptado, resistente, manso e de fácil de criação. Se comparado a outros bovinos, essa vaca produz menos leite (2 a 5 litros/dia), mas é uma boa reprodutora, capaz de parir a partir dos 3 anos de idade.  Segundo o pesquisador Geraldo Magela Côrtes Carvalho, o animal tem como principais características “a rusticidade, adaptação ao clima tropical e à alimentação nativa, resistência à parasitas, além de produzir carne mais macia do que os zebuínos”. Sua características fenotípicas incluem cor amarela avermelhada ou marrom, com extremidades mais escuras; pêlos finos e curtos; chifres grandes em forma de coroa, de cor marrom; focinhos pretos com venta larga; orelhas pequenas com extremidades arredondadas; e pescoço curto. A altura média na cernelha varia entre 1,10 e 1,35m e o peso adulto entre 250 e 350 kg. (CARVALHO et al., 2013). A média de idade para o abate é de 3,5 a 4 anos e, geralmente, para consumo local. Entre os criadores tradicionais, o curraleiro-pé-duro é utilizado para puxar carro-de-boi, importante instrumento de trabalho e locomoção no campo, e também como tradição presente nas festividades religiosas e manifestações culturais. 

As vacas produzem leite rico em gordura, muito valorizado na feitura de requeijão do sertão, também conhecido queijo-manteiga, que é feito sem adição de coalho e cozido em um tacho com fogo à lenha, resultando numa massa amarelada com casca, no formato retangular. Essa produção é uma tradição familiar, feito em pequenas propriedades rurais. O queijo-manteiga poder ter de  2 a 10 quilos a depender da forma utilizada. Já a carne é consumida assada, cozida ou frita, podendo ser também salgada e secada no sol por dois dias para ser consumida seca, como carne de sol.  Apesar das partes mais nobres serem menos macias, a carne em geral tem sabor apreciado (NASCIMENTO, 2020). A paçoca de carne de sol é um preparo típico, feito a partir da batida no pilão com farinha de mandioca refogada na manteiga com cebola e alho. De acordo com a culinarista Wanilda Arraes, “na culinária, sem dúvida, é uma carne de excelência, não deixando a desejar a nenhuma outra raça. É uma carne de maciez, suculência, sabor e aroma diferenciado, agradando assim os sentidos de visão, olfato e paladar”.

Indicação

Nathan Pereira Dourado

Pesquisa

Nathan Pereira Dourado, Maria Clorinda Soares Fioravanti (EV/UFG) e Marcos Jacob (Embrapa Meio-Norte)

Revisão

Pedro Xavier da Silva e Lígia Meneguello

Este produto compõe o projeto

Slow Food na defesa da sociobiodiversidade e da cultura alimentar baiana

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