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Triste como uma vaca numa usina de leite

Como estamos em plena campanha em favor dos queijos de leite cru, e quem fala de queijo fala de leite, achei apropriado traduzir esse artigo de autoria de Jim Wickens, publicado pelo periódico francês Courrier International em 2010 (http://www.courrierinternational.com/article/2010/12/02/triste-comme-une-vache-dans-une-usine-laitiere) a partir de um original do The Ecologist. O texto, que critica a mega indústria leiteira norte americana, toca num conflito maior que opõe alimento industrializado versus alimento artesanal. Vamos a ele:

Longe das luzes brilhantes e dos grandes circuitos turísticos que a Califórnia geralmente evoca, as colossais tetas da indústria leiteira norte-americana se concentram no Central Valley, vasta planície árida e pouco frequentada se estendendo da Serra Nevada até a costa californiana.

Trata-se do celeiro dos Estados Unidos, onde quantidades enormes de amêndoas, uvas e trigo são arrancados da planície morna numa extensão a se perder de vista. É igualmente aí que se encontram as maiores usinas leiteiras do planeta. Existe nesses lugares uma tal concentração de usinas de leite que o condado de Tulare conta, só ele, com 900.000 vacas produzindo cada ano mais de 1 bilhão de dólares de leite. Entretanto, assim como mostra a pesquisa conduzida pelo The Ecologist em colaboração com a World Society for the Protection of Animals, Central Valley se tornou igualmente o teatro de uma guerra silenciosa opondo pequenos produtores e militantes às grandes multinacionais que se instalaram na região.

Para os não iniciados, a descoberta de uma exploração leiteira gigante é um espetáculo impactante mostrando vastos estábulos abertos, montanhas de silagem, verdadeiras piscinas contendo milhões de litros de esterco e centenas de milhares de vacas resignadas. Após ter obtido uma autorização da parte de empregados indiferentes, nós partimos à descoberta desse universo ciclópico, mais próximo de uma usina e do trabalho em série que de uma fazenda. Ali se vêem filas de vacas titubeando sob o peso de suas tetas inchadas antes de entrar nas salas de ordenha automatizadas. É um ciclo ininterrupto e cotidiano que só para quando as vacas começam a produzir menos. Elas são então de novo inseminadas ou enviadas ao abatedouro; esgotadas e eliminadas depois de apenas alguns anos de vida na usina. As vacas das mega-fazendas leiteitas norte-americanas nunca verão um tufo de capim em toda a sua existência. Seu único momento de pausa, elas o passam embaixo dos abrigos poeirentos onde esperam pacientemente entre uma e outra ordenhas.

As vacas Holstein são a raça preferida das mega-fazendas leiteiras, sua carcaça alta contrasta vivamente com as enormes tetas cheias de veias que se balançam sob a barriga. Seu leite é de qualidade menor que o de outras raças e contém muito pus, mas esses animais de criação compensam esse defeito de qualidade pela quantidade: submetidas a três ordenhas por dia e bem cevadas de hormônios de crescimento e de antibióticos para lutar contra freqüentes infecções, as vacas dobraram sua produção de leite em apenas quatro anos.

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(fonte:http://www.courrierinternational.com/article/2010/12/02/triste-comme-une-vache-dans-une-usine-laitiere)

Essas fazendas gigantes fazem igualmente planar uma ameaça invisível sobre Central Valley onde se acumulam desde então grandes quantidades de gás produzindo uma neblina espessa e uma forte poluição atmosférica. De acordo com o American Lang Association (Associação Americana do Pulmão), a poluição gerada pela agricultura industrial “representa sérios riscos sanitários para as pessoas mais frágeis. As crianças, os adolescentes, os idosos, os que sofrem de asma, doenças pulmonares ou cardíacas crônicas, são os mais vulneráveis”. Não é por acaso que regiões agrícolas como Tulare ou Bakersfield mostram uma das taxas de ozônio e de finas partículas na atmosfera das mais elevadas dos Estados Unidos, ultrapassando às vezes a de uma cidade bastante poluída como Los Angeles, mais ao sul.

Albert Strauss, responsável por uma leiteria orgânica próspera, está na origem de um sistema alternativo visando criar uma corrente de produção leiteira mais ecológica na California. “Nós perdemos 55 leiterias por ano e, no decorrer dos últimos quarenta anos, o número de unidades diminuiu de 120 a 23 apenas no nosso distrito. É no mínimo grave. As fazendas gigantes se afastam cada vez mais da agricultura responsável e podem fazê-lo porque estão em posição dominante: elas representam as principais estruturas agrícolas dos Estados-Unidos. E quando a essência da produção de leite é controlada por gigantes, eles têm muito mais poder político”.

Buscando uma realidade completamente contrastante à acima descrita, me juntei em 2011 a um grupo do convivium Rio de Janeiro numa viagem de “exploração e reconhecimento” dos queijos artesanais de leite cru das Serras da Canastra e Salitre, em Minas Gerais. A região reúne milhares de pequenos produtores sobrevivendo graças a essa atividade aprendida com seus ancestrais, alguns poucos dentre eles, mais estruturados, vêm tentando se adaptar às exigências “higienistas” da legislação. O texto acima me fez pensar no contraste com Janio, o primeiro produtor que visitamos em sua pequena propriedade.

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Assistindo à ordenha no estábulo de terra batida, mas que dava uma incrível impressão de ordem e limpeza, vimos o produtor chamar cada uma de suas vacas pelo nome; obedientes, vinham até ele acompanhadas de seu bezerrinho (que, vindo de um outro cercado, também atendia ao chamado do nome da mãe), se deixavam ordenhar e saíam para dar lugar à próxima.

DSC casa queijo flou copyDepois da ordenha, a esposa do produtor cuidava da fabricação dos queijos de forma totalmente artesanal, essa divisão do trabalho familiar sendo repetida duas vezes por dia, todos os dias. Assim como a grande maioria dos produtores desta região, a casa onde são feitos o queijo é bastante simples, num padrão não reconhecido pela legislação sanitária, mas tudo muito asseado.

O soro que sobra da fabricação do queijo é utilizado para alimentação de galinhas e porcos. As galinhas e porcos da região são lindos e saudáveis, quase todos de raças caipiras quase em extinção em outros locais. Os ovos caipiras que provamos são deliciosos, assim como a carne de porco conservada na própria banha. O esterco das vacas é utilizado para adubar a horta e as lavouras próximas à casa, num circuito onde tudo se aproveita e a natureza não é poluída.

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Após a viagem, organizamos no Rio de Janeiro um evento de apresentação dela, que incluía a degustação de cerca de nove queijos que trouxemos de diversos produtores artesanais das duas regiões. O queijo da família do Janio foi considerado o melhor pelos cerca de 40 participantes: com a cura, tinha adquirido um sabor complexo e agradável como os demais, mas apresentava algo a mais. Perto deles, os três queijos industrializados que servimos a título de comparação revelaram sua total falta de sabor e de textura. Coincidência?

A conclusão dessa história volta ao título do artigo traduzido acima: triste como uma vaca numa usina de leite é também o sabor de um queijo industrializado…

Triste também é pensar que são os gigantes da produção de leite, como os descritos pelo mesmo artigo, que acabam definindo o teor da legislação sanitária em vigor. Esta condena os pequenos produtores artesanais à informalidade, ameaça a manutenção das práticas tradicionais de fabricação do queijo e impede os consumidores, principalmente dos grandes centros, de terem acesso aos queijos artesanais.


Denise Gonçalves é membro do Grupo de Trabalho sobre os Queijos Artesanais do Slow Food Brasil

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