Caderno Paladar / Estadão
Índios defendendo o juçara, análise sensorial, cordel do licuri, degustação de cambuci, dignidade rural. Paneiro feito com talo de arumã utilizado para guardar farinha. No cadinho gastronômico-antropofágico Terra Madre Brasil, Macunaíma estaria em casa
Quem foi a Turim participar do Terra Madre diz que o encontro internacional é uma verdadeira babel. Faz sentido, já que ali impera a diferença de culturas (cada um com sua língua, vestimentas e comidas) e de classes – produtores, chefs e acadêmicos.
Mas, guardadas as proporções, o que se viu em Brasília no fim de semana de 20 e 21 de março de 2010 não foi tão diferente disso. O Terra Madre Brasil foi o lugar do encontro e do convívio. Quando você está na confortável zona da língua portuguesa, ainda que cantada nos mais variados sotaques, três índios entram no elevador do hotel para lembrá-lo da diversidade. Eram jovens das reservas de Guarani Silveira e Boa Vista conversando em guarani. Estavam ali para defender o ameaçado palmito-juçara.
E, como eles, outros tantos extrativistas e pequenos produtores de todos os cantos do País se esbarravam, ensinavam e trocavam experiências com chefs, acadêmicos e jornalistas ainda no hall do hotel, enquanto esperavam a van que os levaria ao Complexo Cultural Funarte, em Brasília, onde aconteceu de sexta à última segunda o 2º Terra Madre Brasil.
A restauração da dignidade da vida rural, apregoada pelo criador e presidente do Slow Food, Carlo Petrini, foi uma das tônicas. "Se a terra é madre, nós somos irmãos", disse, em entrevista coletiva. "Nossos avós lutaram pelo voto universal e pelos direitos trabalhistas. Agora, nossa batalha é o direito ao bom e ao belo para todos. Não é utopia."
A articulação dos produtores foi outra bandeira levantada no Terra Madre. "Estamos acostumados com os atravessadores, mas não precisamos deles nem de agências. Não falta comercialização, falta comunicação", disse Adriana Lucena, líder do Convivium do Slow Food em Natal, numa roda de discussão.
Em outro encontro, sobre identidade cultural e valorização da agricultura familiar, Benedito Batista da Silva, o seu Bené, produtor de farinha-d’água de Bragança, no Pará, se emocionou ao falar do produto e de como aprendeu, sozinho, a fazer os disputados paneiros – havia lista de interessados em comprar um. "Vocês acham que isto é um trabalho muito pequeno, que não vai dar futuro, mas está me dando", diz. "Os pequenos, juntos, têm mobilidade e qualidade que os grandes não têm", diz Jussara de Souza, da Fortaleza do Umbu.
O dia em que a ágata venceu o plástico
Nesta edição do Terra Madre os copinhos descartáveis de plástico foram praticamente banidos. Todos os convidados ganharam, na chegada, uma canequinha de ágata colorida. Cada um deu o seu jeito para levá-la a tira-colo, já que não havia copos descartáveis ao lado dos bebedouros. Uns a penduraram no cordão do crachá e outros, na mochila. Só se viram copos descartáveis no Percurso de Análise Sensorial. Mas cada participante recebeu só um e teve de limpá-lo com guardanapo (que decompõe mais rápido) entre as etapas da degustação.
Isto aqui tem gosto de quê?
Uma das atividades mais concorridas do Terra Madre foi o Percurso de Análise Sensorial: Até as Origens do Gosto, uma atividade para grupos pequenos em que eram transmitidas noções básicas sobre a percepção de sabores. Lúdicos, os exercícios testavam os cinco sentidos, do paladar ao tato. E, na fase final, havia duas degustações para testar a percepção dos sabores. Em um deles, comparavam-se três variedades de maçã. No outro, chocolates amargo, ao leite e branco.
Um cordel para o licuri
Duas senhoras da Coopes, cooperativa que vende ingredientes produzidos pela agricultura familiar em Piemonte da Diamantina, na Bahia, deram um show no último domingo ao cantarem um cordel em defesa do licuri – um coquinho de 1,5 cm nativo do semiárido baiano que já foi capa do Paladar. Fizeram a música para defender o coquinho, vítima das queimadas no sertão baiano: "Olha aí o licuri/ ele é nossa cultura/ nós queremos resistir/ discutindo os territórios / como vamos trabalhar / não queimar os licuris / para a família sustentar".
Do cambuci ao mel de abelhas nativas
A superaromática fruta nativa da Serra do Mar, usada em geleias e cachaças, e os méis de abelhas indígenas sem ferrão (mais líquidos, menos doces e com acidez elevada), foram os dois produtos da Oficina do Gosto mais comentados nos corredores do Terra Madre. O último foi provado às cegas, numa degustação conduzida pelo ecólogo Jerônimo Villas-Bôas. Na prova, havia variedades produzidas por abelhas de diferentes regiões do Brasil.
Ingredientes orgânicos e locais para os ‘slows’
Uma parte dos alimentos servidos aos participantes do Terra Madre Brasil eram orgânicos e alguns foram fornecidos por pequenos produtores da rede, caso do baru, castanha do Cerrado usada em um pesto; do queijo de leite cru da Serra do Salitre (Minas Gerais) e arroz vermelho do Vale do Piancó (Paraíba) – ambos servidos em saladas. O bufê escolhido foi o Gastromotiva, que tem uma proposta de sustentabilidade, com o uso de ingredientes locais, e inclusão social.
Texto publicado no caderno Paladar, jornal O Estado de S.Paulo de 25/3/2010