texto de autoria do Coletivo Antirracismo Slow Food Brasil
Centenário do artigo que inaugura o pensamento sobre a cozinha brasileira levanta debate sobre a permanência de um pensamento ainda colonial nos estudos em gastronomia e história da alimentação.l
Em 2022, o artigo “Advertência preliminar” de Manoel Querino completa 100 anos. O texto que introduz o leitor ao livro “A Arte Culinária da Bahia” consegue em poucas palavras, porém com enorme densidade de conteúdo e precisão descritiva traçar a linha histórica da formação de uma culinária própria de nosso território, no caso, da baiana. É consenso que Manuel Querino é um dos primeiros a pensar e escrever sobre a sociologia e história da alimentação no Brasil. Mesmo assim o autor permanece pouco conhecido seja no campo da história da alimentação e seja no dos estudos gastronômicos, cujos currículos escolares ainda adotam como maior referência teórica autores europeus.
A “Arte Culinária da Bahia” é publicado como livro em 1928 e apresenta uma análise inédita do ponto de vista social e histórico da cozinha baiana. Manoel Querino apresenta um panorama da culinária baiana, como ele mesmo define, repleto de “miudezas descritivas” acerca de receitas culinárias e modos de fazer da culinária indígena nativa, dos povos africanos e de portugueses que vivem no Brasil. O autor organiza um inventário sobre o fazer culinário de fato brasileiro já que, ao olhar para o território baiano, trata das principais influências que constituem a base das culturas alimentares presentes hoje em nosso território. Além disso, analisa a sociedade da cidade de Salvador de meados do século XIX tendo como base de comparação teorias e estudos contemporâneos acerca da alimentação que eram realizados na Europa, sem criar qualquer hierarquia entre as práticas alimentares analisadas.
No entanto, a obra de Querino permanece pouco conhecida ainda ele tenha se tornado um arquiteto diplomado, profícuo escritor, ativista e político. Querino foi um homem negro, fato que, em parte, explica seu esquecimento na história mesmo diante de uma obra tão inovadora na forma de pensar a cultura e alimentação no Brasil. É fundamental trazer a obra de Querino para o seu devido lugar: o de pioneiro no campo dos estudos gastronômicos e alimentares no Brasil. Como explica Anderson Carvalho, baiano, cozinheiro, nutricionista e professor universitário: “Querino inaugura um tipo de escrita analítica sobre a comida e o comer que fez escola dentre os estudiosos mais contemporâneos. Ao tecer detalhadamente os complexos entrelaçamentos das práticas culinárias de um Brasil cujas relações sócio raciais são bastante assimétricas, ele exerce alteridades na medida em que descreve a singularidade de nosso fazer culinário”.
A obra de Querino nasce da experiência de viver na Bahia de meados do século XIX, mergulhado na realidade que o rodeia e escrever imbuído de sentimentos sobre a alimentação cotidiana, receitas e técnicas culinárias ancestrais, dando destaque aos alimentos do território e seus usos fortemente influenciados pelo fazer culinário africano, diverso e inclusivo por natureza. Nesse sentido, sua obra se contrapõe aos livros de culinária da época, onde as cozinhas não tinham cor, credo nem sentimentos. Para Patrícia Nicolau, chocolateira, pesquisadora alimentar e conselheira do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio de Janeiro (CONSEA RJ) esse modo de analisar a alimentação na obra de Querino é fundamental: “Para além de salvaguardar o respeito à cozinha baiana, que permanece com a tradição intacta, traz a relevância dessa caracterização de uso culinário como modelo que preserva raízes, memória e cultura de um povo e, sobretudo, dignifica a presença e contribuição da cozinha de preto na formação da culinária brasileira.”
Reler a advertência de cem anos atrás de Manuel Querino é, portanto, um ato de conscientização social e antirracista necessário. Sendo a cozinha e seus modos de preparo a base da cultura alimentar de um povo; e a gastronomia a expressão dessa cozinha enquanto um movimento sociocultural organizado precisamos entender e aceitar que a cozinha brasileira é essencialmente essa descrita por Querino. Como observa Anderson: “[a cozinha brasileira] não é uma cozinha de terroir, mas uma cozinha de um terreiro que se constrói a partir de pessoas que foram arrancadas de sua territorialidade. Cozinhas constituídas de memórias, oralidades, técnicas e redesenhos que criam um sistema alimentar ao mesmo tempo que inclusivo, contraditório e, justamente por isso, belo.”
Patrícia completa essa definição “A trajetória da cozinha brasileira foi feita por pessoas pretas e isso é fato, foram as mãos de mulheres pretas que alimentaram o nosso país por quase 400 anos e, paralelo a isso, a contribuição dos americanos nativos foi o que abriu os caminhos para essa cozinha acontecer; no cuidado com a terra e o tempo dela. O ciclo agricultura – produção – mesa tem uma razão muito grande de ser, porque foi feito por pessoas que trabalharam essa produção desde o solo, cozinharam essa colheita e souberam como prosseguir com o pós mesa.”Anderson e Patrícia são membros do Coletivo Anti Racista do Slow Food Brasil que em abril de 2022 formalizou o compromisso de trazer para dentro do movimento essa intrínseca relação entre comida e raça indispensável ao ativismo alimentar em qualquer lugar do mundo, mas especialmente dentro da realidade do Brasil. Nosso desejo é lançar uma semente fora do ambiente acadêmico no qual ambos os entrevistados estão inseridos e pautar a leitura e discussão da obra de Manuel Querino visando popularizar esse autor como referência dentro do campo da gastronomia brasileira.