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Sementes livres: tecnologia ancestral para a sobrevivência humana

Comunidades tradicionais e camponesas lutam pela salvaguarda das sementes, e contra a chegada das novas biotecnologias e de outras ameaças nos territórios

É pedindo licença para os antepassados que a guardiã de sementes começa sua fala, e é provavelmente desse mesmo modo que Vanessa de França inicia os trabalhos nas roças quilombolas. Nascida e criada no Quilombo São Pedro, no Vale do Ribeira/SP, ela aprendeu com os familiares mais velhos a respeitar a natureza e a guardar as sementes para garantir a sobrevivência física e cultural da comunidade.

Esse conhecimento ancestral transmitido de geração em geração, entre diversos povos e comunidades tradicionais ao redor do mundo, desde o surgimento da agricultura há 10 mil anos, entretanto, vem sendo atacado há décadas com a chegada da Revolução Verde, da tecnificação agrícola e da ampliação da agricultura industrial.

No pacote dito tecnológico, os organismos geneticamente modificados, entre eles os transgênicos, e as novas biotecnologias — como a cisgenia, os impulsores genéticos (gene drives) e a biologia sintética —, influem diretamente sobre a perpetuação das sementes crioulas e livres de veneno para a sobrevivência dos povos detentores de conhecimentos primordiais nos territórios.

Fundação Vida Para Todos 2 - ABAI (PR) _ Foto - Lizely Borges.jpgSementes crioulas na ABAI/PR. Foto: Lizely Borges

“As sementes crioulas estão adaptadas ao território, ao clima, ao bioma, à biodiversidade e à própria realidade dos povos tradicionais. Elas se adaptam à necessidade dessas pessoas”, comenta Naiara Bittencourt, advogada popular da Terra de Direitos. Por meio da assessoria jurídica popular, a organização assessora movimentos sociais e comunidades tradicionais, a partir da construção conjunta de estratégias e linhas de ação. 

Atrelada à pauta principal do direito à terra e à autonomia dos povos dos territórios, a organização preza pela manutenção da agrobiodiversidade e da sociobiodiversidade, na busca pela garantia da segurança e soberania alimentar das comunidades. Com relação ao tema das sementes livres, a Terra de Direitos atua em diversas frentes, como no monitoramento de projetos legislativos, e no apoio e assessoria a determinadas comunidades e grupos de agricultores e camponeses familiares. 

As ameaças às sementes crioulas, contudo, vai muito além da contaminação por variedades transgênicas, recaindo em consequências várias que atingem os povos do território por todos os lados, como “a falta de regularização fundiária, os avanços de monocultura, aumento de pulverizações [de agrotóxicos] e a redução no acesso aos mercados institucionais”, como lembra Vanessa.

Na Chapada Diamantina, a agricultora, guardiã de sementes e idealizadora da Cooperbio, Brígida Salgado, também conta que a chegada sorrateira das mineradoras é um dos problemas causadores da expulsão do homem do campo e da contaminação dos recursos naturais necessários à prática agrícola. “As pessoas vão vendendo e saindo do seu lugar. Com certeza isso vai ameaçando as sementes, pois são comunidades tradicionais que estão ali há centenas de anos e que têm suas culturas, seus cuidados. Acredito que essas comunidades tenham formas de armazenar sementes que a gente desconhece ainda hoje, e que vão se perdendo no momento em que há a invasão”, alerta Salgado.

Dado o intenso cenário de retrocessos em que o país se encontra, em que o Estado cada vez mais se retira de seu papel político e atua em recorrente ofensiva à sociedade civil organizada, não é de espantar que as sementes e seus povos guardiões também se encontrem ameaçados. “É uma inversão absoluta”, como diz Naiara, e continua,  “e a sociedade juntamente com os movimentos sociais têm que mostrar que é possível outro modelo, outro projeto que garanta a soberania e segurança alimentar. Isso os movimentos [sociais] já têm mostrado nessas ações de solidariedade, de distribuição de alimentos, de arrecadação, de visibilização da situação em que vive o país, de plantio de árvores, de circulação de sementes”. 

Em tempos de pandemia, inclusive, se não fossem as sementes guardadas pelas comunidades rurais, muitas populações rurais se encontrariam em estado de maior vulnerabilidade. De fato, é o trabalho da agricultura familiar e camponesa que garante abundância e diversidade no prato, não só para a população em geral, mas sobretudo dentro das próprias comunidades, como é o caso do Quilombo São Pedro.

“Como vamos vender nossos produtos agora, com a pandemia? Por isso a importância da cooperativa dentro das comunidades quilombolas. Também doamos. Porque um planta uma coisa, outro planta outra. Quando tem a diversidade, faltou uma coisa a gente tem a outra”, conta a quilombola, mas ressalta sobre as sementes, “Não pode comprar, tem que trocar. E apenas entre comunidades, para que não haja cruzamento, contaminação.”

VRibeira2_QSPedro_credClaudioTavares-baixa.jpgMilhos no Quilombo São Pedro/Vale do Ribeira. Foto: Claudio Tavares/ISA

Novas tecnologias às custas de quê (quem)?

E houve quem acreditasse, e ainda acredite, que a Revolução Verde e as novas biotecnologias salvariam a humanidade da fome, ao passo em que esse mal assola quase 1 bilhão de indivíduos hoje no mundo. Além da ineficácia das tais tecnologias salvadoras, o número de externalidades graves causadas por essa agricultura de escala industrial é imenso: avanço das fronteiras agrícolas e das monoculturas, perda da sociobiodiversidade, expulsão do homem no campo, destruição da cultura e dos modos de vida dos povos tradicionais e do campo, violência e assassinatos em áreas de conflito, contaminação  do solo, ar e lençóis freáticos pelo excesso de uso de agrotóxicos, dentre outras consequências. 

As sementes transgênicas — que inclusive surgiram como alternativa milagrosa para a diminuição do uso de agrotóxicos nas plantações, já que vinham com a promessa de serem mais resistentes a pragas —, não só atentam diretamente  com relação à sobrevivência dessas culturas e de suas tecnologias ancestrais, como também prejudicam a manutenção da biodiversidade de espécies e a fertilidade do solo. Para não falar nos possíveis danos à saúde, como atestam estudos que correlacionam o consumo desses alimentos à propensão para o desenvolvimento de alergias e à resistência a antibióticos.

A dependência criada por esses organismos aos tais “defensivos químicos” também acarreta danos… mas à saúde humana, e não para as gigantes do ramo que se especializaram em produzir ambos os componentes: sementes transgênicas, — sobre a qual empresas como Bayer e Syngenta detêm as patentes — e seus agrotóxicos pares. Mas que combinação milagrosa para alimentar o mundo, não é mesmo? Pois aí se configura nova falácia. 

“A maioria das sementes modificadas desse pacote tecnológico e das monoculturas são destinadas à exportação e não são necessariamente alimentos, correspondendo a outros anseios de mercado que estão colocados hoje”, como lembra Bittencourt sobre o destino e o objetivo das commodities nacionais.

Para ela, o potencial das sementes crioulas é enorme e isso não configura negação à tecnologia, mas “uma valorização de conhecimentos tradicionais que podem ser associados a conhecimentos científicos, para promover maior germinação, maior qualidade de produção e de plantio, maior resistência.”

É possível alimentar o mundo com sementes crioulas?

Se as mulheres vão dominar o mundo, é também delas a certeza de que as sementes crioulas podem, sim, alimentá-lo. 

Acervo pessoal Brígida Salgado 1.jpegSementes da guardiã Brígida Salgado. Foto: Acervo pessoal

Para a advogada, as sementes crioulas podem alimentar a todos, trazendo maior autonomia, respeitando os processos locais, os pequenos circuitos, a valorização das pessoas e das variedades mais adaptadas ao território, seja em relação ao clima, à biodiversidade e à realização cultural de cada comunidade. 

No caso de Brígida — que migrou da cidade para o campo para produzir orgânicos após o filho ser intoxicado duas vezes por consumir alimentos com agrotóxicos —, a questão da alimentação e da valorização das sementes crioulas reside nesse “viver localmente”. “É preciso que a gente comece a se alimentar, a trabalhar essas sementes localmente. Os grandes centros urbanos vão ter que fazer esse exercício de resgatar as sementes, de trabalhar hortas urbanas, de ter esse refluxo para o campo”, fala sobre o movimento de êxodo urbano que vivenciou na Chapada e que tomou conta de regiões do país nos últimos anos.

“Com as diversidades de sementes crioulas, nunca se fica dependente de uma cultura só. Com as sementes crioulas em nossas mãos, e não nas mãos de transnacionais, só depende de nós mesmos mantê-las, garantindo assim nossa soberania e da população. Ninguém come só soja ou só milho, como o agronegócio que só planta determinadas sementes. Nós plantamos desde sementes a tubérculos. Quando falta alguma coisa, suprimos com outra”, afirma a liderança quilombola.

Além do plantio nas roças e do manejo das sementes, é também nos espaços de encontro locais que se estabelecem discussões e trocas de conhecimento sobre uma produção agrícola mais sustentável. Sem falar nas trocas de sementes na prática, é claro. “Como as feiras servem para diversificar as espécies de sementes, contribuindo para nossa fauna e flora, elas trazem a certeza de que teremos muda boa para o nosso plantio, tornando cada ano maior nossa produção de alimentos”, conta de França sobre a importância das feiras de troca.

A máxima é: diversificar o plantio de alimentos. Mais uma vez a policultura mostra sua importância em relação à monocultura, as sementes livres sobre as sementes modificadas e a agricultura, ao agronegócio.

O Slow Food Brasil defende as sementes livres, ou crioulas, que garantem a conservação da sociobiodiversidade, a valorização da agricultura familiar e camponesa e a promoção do alimento bom, limpo e justo para todos, em detrimento das variedades modificadas e das novas biotecnologias, que causam externalidades gravíssimas, atentando contra os direitos humanos, o meio ambiente e a saúde dos indivíduos.  

A semente crioula para os quilombolas é sinônimo de resistência, e com certeza é possível alimentar o mundo a partir delas, como afirma Vanessa. Não seria a hora, então, de alimentar o mundo com mais resistência?

Conheça os outros materiais do projeto Tecendo Rede pelo Alimento Bom, LImpo e Justo para Todos, sobre o tema Sementes, OGM e Novas Biotecnologias:
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