Pesca do Acari Foto de Fabiana Thomé da Cruz

Quem quer provar Piracuí do Baixo Amazonas?

Pesca do Acari Foto de Fabiana Thomé da CruzNo interior de Prainha, em comunidades ribeirinhas situadas às margens do Rio Amazonas e de seus afluentes, território Baixo Amazonas, muitas famílias produzem piracuí, palavra de origem indígena para referir-se a farinha de peixe.
Produzido a partir de receita e modo de fazer que vem sendo ensinado há séculos, a cultura da desidratação da carne de peixe, que é transformada em farinha (piracuui em nhengatu amazônico), é uma prática dos antepassados indígenas repassada oralmente de geração a geração. O piracuí está associado não apenas à tradição no modo de preparo como também à forma de manejo e relação com os recursos pesqueiros da região, temas que já foram abordados no site Slow Food Brasil em artigos de Neide Rigo e Glenn Makuta.

 Se há algumas décadas a disponibilidade de peixes era significativamente maior na região, atualmente as famílias que vivem ali explicam que, devido ao aumento da pesca e descuidos especialmente em relação à época de procriação dos peixes, na região diminuiu a ocorrência de muitas espécies, entre elas a do Acari, peixe da família dos cascudos, espécie preferida para a produção de piracuí no Baixo Amazonas.
Amanhecer na Comunidade Menino Deus Foto de Fabiana Thomé da CruzO acari é considerado o melhor peixe para fazer farinha, como explicam as famílias da Comunidade Menino Deus, que nos acolheram às margens do Anema, não apenas porque assim vem sendo ensinado de pais e mães para filhos e filhas como também porque esse peixe, além de não ter escamas, tem espinhas grandes, o que faz com que a farinha fique mais “limpa” ou, pelo menos, mais fácil de catar do que se feita com outro tipo de peixe. Além disso, como também explicaram, o sabor de piracuí de acari é melhor e quem conhece, só de olhar já sabe se a farinha é só de acari ou se ali há mistura de outros peixes.
Mas, voltando à pesca do acari, a comunidade nos explicou que há alguns anos foi feito um acordo de pesca entre os pescadores da Comunidade Menino Deus, que possibilitou conscientizar as famílias do local sobre o manejo adequado do acari para que fosse possível pescá-lo em boa parte do ano, respeitando-se o período de defeso. Famílias ribeirinhas que vivem às margens do rio Anema contaram que, se não fosse o acordo de pesca que garante que em um igarapé, afluente do rio Anema, o acari possa se reproduzir e crescer adequadamente, os pescadores teriam que viajar longas distâncias para a captura do acari, como outras comunidades já precisam fazer. E aqui vale lembrar que viajar é por rios e igarapés, já que, nessas comunidades, os rios fazem às vezes de avenidas, estradas e ruas.

Rabeta pescador e acaris Foto de Fabiana Thomé da CruzPor meio do acordo de pesca, a comunidade se compromete a, em um igarapé específico, preservar os peixes respeitando o período de defeso, não pescando peixes que ainda não chegaram à idade adulta. Com isso, as famílias do Anema dispõem de matéria prima próxima da Comunidade, de forma que podem mais facilmente produzir piracuí ao longo de todo o período do ano em que a pesca do acari é permitida.
Logo após ter sido pescado, o que é feito de forma artesanal com rede de pesca, os peixes são mantidos vivos no rio, próximos ao local onde será feito o piracuí. Essa forma de manter os peixes é porque, para a farinha ficar boa, o acari precisa ser fresco, o que significa que ele precisa estar vivo e ser abatido no momento em que a farinha vai ser preparada. Para o abate, a cabeça do peixe é cortada de forma rápida e certeira. Como na cabeça não há carne, as cabeças, desprezadas, são levadas para a terra porque, pela quantidade de carcaças, se fossem jogadas no rio, poderiam contaminá-lo.

Torra do Piracui Foto de Rodrigo LopesDepois do abate, a etapa seguinte acontece em uma estrutura coberta, anexa à casa de morada da família. Nesse local, os peixes são lavados e fervidos em água até o ponto em que é possível separar a carne da “couraça”, etapa chamada de “descasca”. Quando todos os peixes estão cozidos e toda a carne está separada, ela é colocada em um tacho que, sobre o fogo, dá início ao processo de “escaldar” o peixe, ou seja, tirar toda a umidade. Nesse processo, à medida que a água vai se evaporando, com uma espécie de rodo de madeira manuseado de forma vigorosa, a carne vai sendo desmanchada em pequenos pedaços que vão ficando cada vez mais miúdos, a ponto de, ao longo do processo, virar farinha. Mas isso vai acontecer na fase subsequente à “escalda”, quando a massa de carne deixa de grudar no fundo do tacho e começa o processo de torra. Nessa fase, acrescenta-se sal e, com o avanço da torra, o aroma vai mudando, deixando um cheiro delicioso no ar! Nessa fase, as famílias lembram que não se pode ter pressa e aumentar muito o fogo: se isso for feito, o piracuí queima e, aí, perde qualidade.
Piracui Foto de Rodrigo LopesDepois de torrada e bem aerada, a farinha é peneirada para retirar espinhas maiores e partes de ossos para, depois, ser embalada em embalagem fechada (geralmente saco plástico) para não haver contato com o ar e, assim, aumento de umidade no piracuí, o que comprometeria a durabilidade do produto. Depois de embalado, o piracuí é vendido a atravessadores que, no período de produção desse peixe (de agosto a novembro), passam pelo menos uma vez por semana na comunidade para comprar e revender em cidades próximas, especialmente em Santarém, maior mercado do produto.
O escoamento do piracuí acontece também por meio de redes de interconhecimento pois, como essa é uma iguaria da região, quem vai até ali visitar familiares ou amigos, sempre leva piracuí. No entanto, nos últimos anos, a proibição do transporte aéreo de piracuí tem prejudicado esse fluxo. As companhias aéreas proíbem aos passageiros de transportar a farinha, argumentando ser material inflamável. Essa proibição gera polêmica e frustração entre os apreciadores, sendo que, por ora, essa questão, escassamente explicada ou justificada, não está resolvida.

E é piracui assado ou cozido?

Logo que chegamos na Comunidade Menino Deus, perguntando sobre o piracuí de acari, nos contaram que há piracuí assado e cozido, mas atualmente, na comunidade visitada, só se faz o cozido. A diferença entre eles está no início do processo. No caso do piracuí cozido, o peixe é cozido em água, enquanto que no caso de ser assado, isso é feito por meio de muquém, técnica de origem indígena para assar peixes em fogo lento e na fumaça. Quando assada, a carne do peixe fica mais enxuta, facilitando as etapas de escalda e torra. Mas, por outro lado, em relação à opção de cozimento, assar o peixe demanda mais trabalho, tempo e cuidado, principalmente na etapa de “descasca”. Por isso, na comunidade visitada, as famílias preferem fazer o piracuí cozido, pois mesmo que alguns digam que não é tão gostoso quanto o assado, o trabalho é facilitado.
Assado ou cozido, o piracuí é um produto que, como tantos produtos artesanais do Brasil, diz respeito à história, à cultura, à tradição, mas também à renda, essencial para a manutenção das famílias.
Bolinho de Piracui feita pela Rose e pela MelAlém disso, é claro que o piracuí também está no prato das famílias produtoras que, tanto quanto os consumidores da cidade, apreciam essa iguaria e, desde crianças, aprendem, o valor e o sabor, a título de exemplo, de um bolinho de piracuí ou de mojica, pirão feito a base de piracuí e farinha de mandioca.
Nessa viagem, além de provar (e me apaixonar) pela história e pelo sabor do piracuí, me encantei também com a riqueza da simplicidade e da alegria que encontramos às margens do rio Anema, onde, das casas às margens do rio ou do barco que nos serviu de hotel nos dias em que lá ficamos, a vista da vegetação, do nascer e do por do sol (e também da lua, pois tivemos a felicidade de estar lá junto com a lua cheia) completam um cenário que, alimentado pela sociabilidade e receptividade das famílias locais, falam da riqueza do piracuí, mas muito além disso, também nos contam da riqueza de um povo que, desde criança, está próximo da terra e da água, das árvores, peixes e frutos. Olhando assim, é fácil entender que, como nos contou um morador da comunidade, ali é o paraíso, lugar melhor que qualquer cidade no mundo!

Se você quer conhecer um pouco mais sobre este paraíso e sobre o piracuí, assista ao vídeo Piracuí do Baixo Amazonas, (disponível aqui), construído a partir de visita à região.


Agradecimentos

Barco Pousada Foto de Fabiana Thomé da CruzAgradeço a oportunidade de, ao conhecer sobre a produção de piracuí, aprender tanto sobre a vida. E, por tantos aprendizados, sou grata à Comunidade Menino Deus/Prainha/PA, que nos acolheu tão bem e tanto nos ensinou. Agradeço aos colegas na consultoria IICA/MAPA, em especial Rodrigo Lopes de Almeida, Carlos Roberto de Castro (Caiuca) e a Jesus de Nazareno Magalhães de Sena, Kepler Braun e Ananias, pelos contatos e oportunidade. Agradeço também à Prefeitura de Prainha que, por meio do Secretário Geral Dinaldo Pedroso e do Secretário de Produção Arnoldo Pingarilho e do Assessor de Comunição Nadioberto, nos proporcionou conhecer, de forma incrível e sensível, a Comunidade Menino Deus. Também sou grata à ONG Sapopema (http://www.sapopema.org) que, representada por Antonio José Bentes, tanto nos ensinou sobre os modos de vida da região, e ao Rivelino, da Colônia de Pescadores Z-31, que nos deu aulas sobre pesca e acordos de pesca. Por fim, mas não menos importante, ao “Preto” que, como Comandante do B/M Águia, nos levou até o Rio Anema e também a Rose e a Mel, que durante os dias no barco garantiram comidas deliciosas que alimentaram também boas conversas! A escrita deste texto também foi especial e contou com a leitura atenta e ótimas contribuições de Vicente Marques, Carlos Roberto de Castro (Caiuca), Dinaldo Pedroso e Danielle Wagner. Agradeço a disponibilidade e generosidade de vocês em contribuir com essas notas de viagem!


* Fabiana Thomé da Cruz trabalha como professora colaboradora no PGDR/UFRGS e em consultorias na área de produção e processamento de alimentos artesanais e tradicionais. Mais recentemente, tem também se dedicado a cultivar o Projeto Ciência com Afeto.

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