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Queijos artesanais de leite cru – podemos falar de avanços?

O GT dos Queijos Artesanais do Slow Food concluiu, em janeiro de 2018, o projeto de ações de salvaguarda dos queijos artesanais de leite cru de Minas Gerais, financiado pelo IPHAN – Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, dando continuidade ao registro do Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas nas regiões do Serro, Serra da Canastra, Alto Paranaíba e Serra do Salitre, um saber fazer reconhecido como Patrimônio Cultural do Brasil desde junho de 2008. As ações realizadas no âmbito do projeto, que teve a duração de 2 anos e meio, envolveram um extenso  trabalho de campo – visitas a produtores, associações e instituições locais, participação e realização de eventos, montagem de exposições, entre outras – nas três regiões abrangidas pelo registro.

O projeto resultou na produção de um extenso material que ainda precisa ser explorado de forma sistematizada. No entanto, a observação e experiência da realidade local – que aprofundaram o conhecimento sobre o tema, dando novos contornos ao trabalho que o  grupo vem desenvolvendo há sete anos – nos permitem chegar a certas constatações.

 

A primeira delas parte de um olhar em perspectiva recuando ao contexto de origem do nosso grupo. Quando nos reunimos em 2011, por ocasião do I Simpósio de Queijos Artesanais em Fortaleza, tínhamos como objetivo o reconhecimento e a valorização dos queijos artesanais de leite cru – o que implicava aprofundar o conhecimento e atuar nas diversas frentes relacionadas ao problema: o queijo de leite cru como alimento seguro, a legislação, a comercialização, o reconhecimento da qualidade gastronômica, e os aspectos culturais da produção artesanal – gosto, modos de fazer e de ser.

O cenário da produção de queijo artesanal de leite cru mudou bastante desde então. Hoje os queijos artesanais de leite cru estão na ordem do dia: assunto da mídia, tema de eventos nacionais e internacionais, objeto de novas legislações, sua qualidade gastronômica é reconhecida como superior à dos queijos industrializados. Sua comercialização se intensificou de diversas maneiras, sendo hoje encontrados nas prateleiras do comércio especializado em grandes centros do país, nas cozinhas dos melhores restaurantes e na mesa de degustadores e apreciadores de queijos de alta qualidade, substituindo cada vez mais os queijos estrangeiros. No entanto, por trás desse aparente avanço, vemos que a situação se tornou bem mais complexa.

Esse boom dos queijos artesanais de leite cru vem acompanhado de um forte processo de gourmetização que transforma seu papel original, de um produto tradicional, parte da cultura alimentar brasileira, elevando-o ao patamar – e ao preço – de um produto da alta gastronomia. Quais as consequências dessa mudança?

Em primeiro lugar é preciso observar que a intensa valorização dos queijos de leite cru se dá em torno dos queijos curados e/ou maturados. Observa-se em função dessa tendência todo um trabalho de “educação do gosto” do consumidor no sentido de “despertar” seu paladar para esses queijos, cuja maior complexidade organoléptica deveria se sobrepor à espontaneidade dos gostos e dos hábitos alimentares que privilegiam em geral o queijo fresco. Os produtores se veem atraídos para o novo “nicho de mercado”, curando e maturando seus queijos – apesar de nem sempre dominarem o processo – com o objetivo de conseguir preços cada vez mais elevados nas feiras, eventos e lojas “gourmet” dos grandes centros, onde os consumidores ficam satisfeitos por poderem comprar e valorizar a produção nacional em detrimento dos até então onipresentes queijos europeus. Nisso são assegurados pelos resultados das pesquisas científicas que afirmam a inocuidade dos queijos de leite cru somente a partir de determinado tempo de cura, apesar do amplo consumo de queijos frescos aparentemente não se mostrar nocivo à saúde.

Por outro lado a ênfase nos queijos curados cada vez mais corrobora as questionáveis restrições da legislação em relação ao queijo fresco, que o mantém excluído de qualquer regulamentação. Lembrando que a “legalização” dos produtores de queijo de leite cru de MG, RS e RN, estados que aprovaram legislações permitindo a produção e venda de queijos de leite cru, continua tendo pouquíssima adesão – em torno de 5% do total estimado de produtores artesanais – já que implica em investimentos altos, inacessíveis à grande maioria dos pequenos produtores, e que precisam ser recuperados pelo aumento da produção e dos preços de venda.  

O acesso ao mercado formal e “gourmet” continua restrito aos produtores “legalizados” e ao queijo curado; os pequenos produtores e seus queijos frescos, que correspondem em grande parte ao gosto e consumo popular, se mantém no mercado informal e na venda através de intermediários.

Os poucos produtores “legalizados” em geral se tornam especializados; graças aos preços mais elevados e ao acesso, ainda que parcial, à venda direta conseguem uma evidente melhora sob o ponto de vista material. A especialização no entanto os torna mais vulneráveis às oscilações do mercado; além disso são levados a abandonar, por conta do aumento da produção, um modo de viver e produzir mais sustentável, em que as hortas e pequenas criações de animais na propriedade complementavam a produção de queijo e forneciam o alimento cotidiano, contribuindo para a segurança alimentar e nutricional da família. O produtor especializado perde assim a autosuficiência alimentar, tornando-se consumidor do comércio convencional, o que muda seu perfil em relação ao produtor familiar tradicional.

A gourmetização dos queijos também faz “crescer os olhos” da indústria de laticínios que começa a se apropriar da imagem – e da história – da produção artesanal para vender seus produtos, confundindo o consumidor pouco informado. As ambiguidades da linguagem são inúmeras: “artesanal”, “tradicional”, “da roça, “do campo”, “tipo canastra”, entre outras –, palavras juntam-se a imagens “rurais” para explorar a indefinição da distinção entre as escalas e modos de produção artesanal e industrial.

Ficamos felizes com a valorização e reconhecimento da qualidade dos queijos artesanais de leite cru brasileiros, no entanto queremos alertar para os aspectos negativos do processo: assim como a legislação, que permanece inadequada à natureza da produção artesanal e que elege um só modelo de produtor, a gourmetização exclui do processo os pequenos produtores familiares que são responsáveis pela grande maioria da produção artesanal. Esses continuam tendo seus queijos “não legalizados” perseguidos pela fiscalização sanitária, e se encontram cada vez mais invisibilizados pelos aparentes “avanços” relativos à produção e comercialização dos queijos artesanais. As novas legislações, pretensamente voltadas para os queijos artesanais, não reconhecem modos de fazer, materiais e equipamentos utilizados tradicionalmente e seguem impondo – em menor escala – a mesma lógica da legislação industrial.

Nós do GT dos Queijos continuamos na defesa do pequeno produtor, até que ele obtenha o reconhecimento de seu saber fazer e modo de ser, assim como da qualidade e da segurança dos seus queijos.

Comments:

Lucas Martinelli
1 de março de 2021

Boa tarde, como faço para fazer parte do Gt de queijos artesanais? Sou mestrando e pesquisador dessa área, em especial o queijo coalho nordestino; e em minha dissertação abordarei diversos temas que tangenciam essas questões de gourmetização, tradicionalidades, patrimonios, memórias, etc.

Katia
1 de abril de 2021

Oi Lucas! Ficamos felizes com seu interesse. Vamos inserir você no grupo com muito prazer. Em breve esperamos realizar um encontro virtual do grupo que acaba de aderir ao novo formato de organização da Rede Slow Food Brasil, agora somos uma comunidade SF : GT Queijos Artesanais de Leite Cru. Adoraríamos acompanhar seu trabalho de dissertação. Abraço

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