Joao Galego

Um passeio pelos sabores de João Galego, Cabo Verde

Joao GalegoNo interior da Ilha da Boa Vista, uma das dez ilhas que integram Cabo Verde, está João Galego, uma pequena e simpática localidade rural. Lá, entre alimentos frescos, produzidos em hortas que, em virtude da aridez do ambiente, são produtivas graças a um sistema de irrigação chamado gota a gota, as famílias rurais dedicam-se ao cultivo de legumes, hortaliças e temperos, que, além de destinados ao autoconsumo, são comercializados três vezes por semana no Mercado Municipal de Sal Rei, maior centro urbano da Ilha da Boa Vista. Além desses alimentos, as hortas comportam também currais, onde há produção de caprinos, especialmente para produção de leite. O leite, ordenhado manualmente, é processado, dando origem a um queijo artesanal, feito de leite cru, consumido fresco e muito apreciado não apenas pelos moradores locais como também por turistas de passagem pela Ilha.

Em se tratando de queijos de Cabo Verde, é preciso lembrar que queijos artesanais são também produzidos em outras ilhas do arquipélago, mas, como ouvi comentar várias vezes enquanto estive no País, em cada ilha onde há essa produção, os queijos possuem características específicas, diferenciando-se, por exemplo, pelo formato, textura e quantidade de sal. Assim, além dos queijos da Boa Vista, destacam-se também no País os queijos da Ilha do Fogo e da Ilha de Santo Antão, onde também são majoritariamente produzidos a partir de leite de cabra.

Em João Galego, comunidade que, na Ilha da Boa Vista, se destaca pela produção de queijos, não se sabe ao certo a origem desse conhecimento. O que se sabe é que as avós e mães já o produziam, que agora ensinam as netas, filhas e sobrinhas e que seus sabores suaves conquistam o paladar.

Visitando os currais e conhecendo a produção um pouco mais em detalhe, foi possível perceber similaridades entre os queijos de João Galego e alguns queijos artesanais produzidos no Brasil. Uma dessas similaridades diz respeito à importância do soro, resíduo líquido oriundo da produção de queijos. Em casos de produção de lácteos em larga escala, esse efluente, altamente poluente, requer tratamento adequado. Mas no caso de João Galego e de regiões como os Campos de Cima da Serra, nordeste do Rio Grande do Sul, onde se destaca a produção Queijo Serrano, o soro não representa risco de contaminação ambiental. Como discutido em outra parte (Cruz, 2012) em relação ao Queijo Serrano, isso se deve ao fato de a produção ocorrer em escala condizente com a estrutura das propriedades, de modo que o efluente é coletado e destinado à criação de porcos e à alimentação de terneiros, vacas e mesmo de animais domésticos, como cachorros. Esse aproveitamento do soro é também evidenciado em outros contextos em que há produção artesanal de queijos no Brasil, como é o caso do Alto Sertão Sergipano. Menezes (2009), referindo-se a essa região, relata a importância do soro para a produção de Queijo de Coalho e afirma que, mesmo sendo comum a produção de queijos em fabriquetas, a partir de leite produzido por familiares e vizinhos, a condição para a venda da matéria-prima é, em muitos casos, a devolução diária do equivalente ao leite entregue em soro. Essa prática, presente na região estudada por Menezes (2009), é mantida porque naquele contexto o soro é fundamental para a alimentação dos porcos que, por sua vez, contribuem para a renda das famílias. Do mesmo modo, Meneses (2008), em estudo sobre o Queijo Minas Artesanal, retoma a explicação de produtores sobre a importância do efluente apontando que, em fazenda que não tem produção de queijo, até os cachorros são magros. Por meio dessa afirmação, os interlocutores de Meneses fazem alusão ao fato de que, sem produção de queijo, não há soro, de modo que os animais domésticos e os de criação, como porcos e aves, ficam privados desse alimento e, em consequência, são magros.  

Moldando o queijo no cintxuAlém da centralidade do soro para a alimentação de animais domésticos e de criação, outra semelhança que chama a atenção é o nome empregado para referir-se à fôrma para moldar os queijos. Em João Galego, aprendi que esse utensílio é chamado cintxu, em versão na língua criola para o que, nos Campos de Cima da Serra, onde é produzido o Queijo Serrano, é denominado cincho. Essa similaridade remete, possivelmente, à influência portuguesa, já que em algumas regiões de Portugal as fôrmas de queijo são também nomeadas de cincho (ver, por exemplo, Tibério; Cristóvão, 2011).

Somadas a essas semelhanças, os modos de fazer, de espremer bem a massa e colocar sal sobre a superfície do queijo não são de todo diferentes da produção artesanal de queijos nos Campos de Cima da Serra, no Alto Sertão Sergipano ou nas regiões queijeiras de Minas Gerais.

Queijos em diferentes formatosEm João Galego, enquanto acompanhava a produção de queijos, uma das senhoras, também produtora, contou que hoje o queijo é guardado na geladeira, mas antigamente, o queijo era feito em tamanho maior, no formato de pico, e armazenado sobre uma tábua para secar. Os queijos eram então consumidos mais maturados, diferenciando-se do modo como são consumidos hoje, predominantemente frescos.

Feijao pedraMas nem só de queijos se vive em João Galego. Além de vários pratos à base de peixe e frutos do mar, há um prato que me foi apresentado como cartão postal do País, a catxupa, prato a base de milho e feijão, que tive o prazer de provar, preparado pelas mãos cuidadosas e experientes de uma agricultora, também produtora de queijos. A catxupa, que pode ser rica ou pobre, dependendo da diversidade e quantidade dos ingredientes que serão acrescentados, é feita a partir do cozimento do milho (em geral, aquele quebrado que, no Brasil, chamamos de canjica), com feijão pedra, um tipo de feijão produzido em Cabo Verde.

CatxupaNa catxupa, pode-se acrescentar todo o tipo de carne, inclusive buchada de cabra e, ainda vegetais e legumes diversos.  Na hora de servir, as carnes e os vegetais são tirados do caldo de cozimento e servidos separadamente. Esse é um prato que requer longo tempo de preparo, sendo geralmente consumido em momentos de encontro e sociabilidade.

No dia em que a catxupa é preparada, ela é consumida com o caldo do cozimento mas, no dia seguinte à sua preparação e degustação, o caldo é separado dos grãos que, então, são aquecidos em uma frigideira e servidos com um ovo estrelado por cima. Essa é a catxupa guisada que, comumente, é consumida no café da manhã. Essa versão é também muito apreciada em Cabo Verde e se constitui em uma refeição forte, que dá sustança por várias horas do dia.

Catxupa guisada com ovoPor meio de alguns alimentos, como no caso de queijos artesanais e da catxupa, exemplos apresentados neste artigo, é possível perceber similaridades entre João Galego, uma pequena comunidade rural em uma Ilha de Cabo Verde, e diversas comunidades rurais brasileiras em que, além de queijos feitos de leite cru, alimentos a base de milho e feijão são fundamentais para a alimentação das famílias. Essas semelhanças, somadas à alegria e acolhida dos cabo-verdianos, fazem com que conhecer sua terra, sua gente e seus costumes seja uma experiência inspiradora.


Um banquete em Joao Galego

Referências

CRUZ, Fabiana Thomé da. Produtores, consumidores e valorização de produtos tradicionais: um estudo sobre qualidade de alimentos a partir do caso do Queijo Serrano dos Campos de Cima da Serra – RS. 2012. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Rural) – Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.

MENESES, José Newton Coelho. Queijo Artesanal de Minas: Patrimônio Cultural do Brasil. Dossiê interpretativo. v. 1. Belo Horizonte. 2006.

MENEZES, Sônia de Souza Mendonça. A força dos laços de proximidade na tradição e inovação no/do território sergipano das fabriquetas de queijo. 2009. Tese (Doutorado em Geografia) – Núcleo de Pós-Graduação em Geografia. Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2009.

TIBÉRIO, Manuel Luís; CRISTÓVÃO, Artur. Produtos tradicionais e desenvolvimento local: o caso da designação protegida Queijo Terrincho DOP. In: I CONGRESSO DE ESTUDOS RURAIS TERRITÓRIO, SOCIEDADE E POLÍTICA, 2001, Vila Real. Título… Vila Real, 2001


* Fabiana Thomé da Cruz é graduada em Engenharia de Alimentos (ICTA/UFRGS), doutora em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS) e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Alimentação e Cultura (GEPAC) e do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alimentos e Manifestações Tradicionais (GRUPAM). Tem se dedicado a pesquisas que enfocam conhecimentos tradicionais a partir de alimentos e práticas alimentares. É coorganizadora da recém-lançada edição especial da Revista Ateliê Geográfico, que tem por tema Alimentos e Manifestações Culturais.

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