Na onda do slow food

Natal, 04/07/2008 – Tribuna do Norte

Pensar sobre o que se come quando as pessoas mal delegam tempo para comer parece uma incoerência da vida moderna. Na correria do dia-a-dia, a palavra "fast" (rápido) soa com muito mais familiaridade do que algumas expressões praticamente perdidas no tempo, como "horário de almoço" ou "jantar em família". Se o leitor pensar que estamos fazendo uma crítica sobre seu modo de vida, acertou. É hora de repensar sobre o que se come e o que se faz à hora das refeições.

Em vez de "fast food", renda-se à filosofia do movimento Slow Food. Para começar, reserve um tempo para se alimentar. Pare para pensar sobre o que está comendo, aprecie cada momento, não se deixe levar por modismos e, principalmente, saiba o que está ingerindo. Do jeito que as coisas estão, cada um lutando para sobreviver no mercado de trabalho, ter um momento especial à hora das refeições gera até sentimento de culpa.

Priorizar o bem-estar próprio, dos amigos, vizinhos e familiares, estar atento à biodiversidade e valorizar as tradições populares são as regras básicas do movimento, que conquistou mais de 80 mil adeptos em todo o mundo. A cozinheira Adriana Lucena é uma das entusiastas do Slow Food e lidera a versão potiguar do movimento, que prioriza o alimento bom, limpo e justo.

"Bom no sentido de gostoso e bem feito, limpo para expressar que é livre de substâncias químicas e justo com relação à forma como foi comercializado", explica. Cozinheira de mão cheia, Adriana produz pimentas e recebe pessoas em sua Quinta da Aroeira, em Jandaíra, para degustações de refeições que são feitas de uma forma "slow". Ela procura resgatar ao máximo as tradições e caracteriza sua gastronomia como retrô, "de retrocesso, de voltar às origens", diz.

E em sua busca constante de proporcionar às pessoas e a si mesma uma alimentação histórica, a chef planeja cada detalhe do cardápio. "Os vegetais são adquiridos na feira de orgânicos que acontece toda sexta-feira, por trás do Mercado Petrópolis, ou diretamente aos produtores que eu conheço. Alguns têm propriedades próximas da minha".

Para experimentar a comida feita e servida como um verdadeiro ritual gastronômico, Adriana sugere muita calma e disponibilidade de tempo para quem vai se render ao seu estilo. "Faço tudo com muita calma, no fogão à lenha, resgatando receitas tradicionais".

Atualmente, a Quinta está sendo reformada para oferecer estrutura para quem desejar passar uns dias com muita autenticidade no campo, aos cuidados da chef. Na sua oficina de criação, ela coloca em prática tudo o que aprendeu com seu pai, Jardelino Lucena, e relembra a adolescência em Jenipabu.

Contra a dinâmica da vida moderna

É bom esclarecer que o termo "slow" (lento, em inglês) não é aplicado para classificar as atitudes sugeridas pelo movimento Slow Food com relação ao tempo dispendido para as atividades realizadas. Na verdade, é uma contraposição a aceleração imposto pela vida moderna.

O professor Marco Antônio Rocha Júnior, do curso de turismo das UERN, é um dos participantes do grupo potiguar. Ele cita que o conceito principal se refere à alimentação com consciência e responsabilidade e destaca que uma das preocupações dos associados é com a biodiversidade. "É uma busca constante que objetiva fazer a ligação direta entre produtores e consumidores".

Nesse ponto, Adriana elucida uma questão muito interessante. Ela diz que a preocupação com a origem dos alimentos pode ser colocada em prática com o consumo de produtos com certificação. O consumidor não conhece quem plantou mas, através de um selo, pode-se ter a certeza sobre o cuidado com que aquele alimento foi produzido. "As gôndolas dos supermercados estão cheias de produtos orgânicos".

Também ativista do Slow, o professor de italiano Michele Maisto explica o porquê de a gastronomia ser a principal bandeira do movimento. "Gastronomia não é só o que está no prato. É todo um processo que diz muito sobre um povo e seus hábitos. O que se come é a última etapa".

Um jeito ‘slow’ de ser

O Slow Food tem o objetivo de valorizar as tradições populares e atua de modo a resgatar saberes que correm riscos de ser extintos. A explicação é muito simples: "o popular não é obrigatoriamente Slow Food, mas tem muito da característica do sabor daquele povo e isso é uma identidade local que deve ser preservada como cultura gastronômica", justifica Adriana.

Para isso o movimento internacional criou a Arca do Gosto e as Fortalezas de produção. A arca é um catálogo mundial que identifica, localiza, descreve e divulga sabores quase esquecidos de produtos ameaçados em extinção. No Brasil, um dos alimentos classificados é o arroz da terra, muito apreciado para a feitura do arroz de leite e arroz doce com rapadura.

Para garantir a produção do arroz vermelho (nome como é mais conhecido o alimento), foi criada uma fortaleza de produção no interior da Paraíba. Além de promover o cultivo, garante-se a qualidade e o comércio (justo sempre).

"O alimento da arca deve ser a base da economia de uma comunidade. Infelizmente, falta unidade aos grupos que produzem determinados tipos de alimentos que poderiam estar na arca". Ela se refere a questão do associativismo e lamenta a desvalorização do grude de Extremoz, um produto tipicamente potiguar que conserva as formas rudimentares de produção. "Eu espero conseguir contato das pessoas de Extremoz e tornar o grude um produto da Arca do Gosto".

Comidas populares

As atitudes que conjugam as idéias "slow" são variadas. Adriana convida aos interessados a se associar ao movimento, mas não é necessário fazer parte da organização para praticar atos com base na filosofia que nasceu na Itália, em 1986, por Carlo Petrini. Michele Maisto diz que levar sacolas para as compras é um ato "slow". "Quando eu era pequeno, aprendemos com minha mãe a levar as sacolas para a feira".

O professor Marco Antônio sugere não comer em self-service. "Mas se não houver outro jeito, que seja feito de um jeito slow, ou seja, aproveitando o momento da refeição. É bom lembrar que tudo na vida deve ser feito com responsabilidade e consciência", explica. Adriana Lucena sugere como ato "slow" ir até o Mercado da Redinha para comer ginga com tapioca. "Existe outra coisa tão tipicamente natalense como essa combinação?".

Ela é incansável na questão do resgate e pela valorização das formas tradicionais de alimentação e sugere os pratos à base de carneiro, porco, e outras iguarias tipicamente regionais, do Mercado Público de Ceará-Mirim – "se a pessoa vai de trem é melhor ainda" -, e o picado de Bibi no Mercado Petrópolis – "impossível resistir ao sabor e à forma com a refeição é preparada. A gente pergunta de onde vem e ela conta que compra o carneiro a um amigo, que cuida pessoalmente da criação".

Ser "slow" é ser verdadeiro, apreciar cada detalhe da vida com se fosse um grande pilar de sustentação. É comprar um peixe fresco ou congelado por empresas sérias, que se preocupam com a qualidade do pescado, chamar os amigos e cozinhar com alegria, temperando com amor. Ser "slow" é ser lento no que diz respeito às tendências conformistas e ser rápido para reter o é que verdadeiramente importante.

Serviço:
Quinta da Aroeira. Povoado do Cabeço, Jandaíra.
Tel.: (84) 9964-9922. [email protected]

Convivium Potiguar – Natal (RN)
Líder: Adriana Lucena
Rua Raimundo Chaves, 2189, Bloco B, ap 201
59064-390 –  Natal – RN
(84) 99862187
[email protected]

Mais informações sobre o Slow Food:
http://terramadre.slowfoodbrasil.com
e www.slowfoodbrasil.com


Eliade Pimentel é repórter da Tribuna do Norte

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