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“Nós cultuamos todas as doçuras”: a contribuição negra para a tradição doceira de Pelotas

foto_8b.jpgEste estudo se coloca como um desdobramento do Inventário Nacional de Referências Culturais – produção de doces tradicionais pelotenses, pesquisa que segue metodologia do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), visando identificar e reconhecer a tradição doceira pela qual Pelotas, situada no Rio Grande do Sul, é nacionalmente conhecida.

O que impulsionou esta pesquisa sobre a contribuição negra – sujeitos que partilham, adaptam e reinventam o patrimônio cultural afro-brasileiro – para tal tradição foi justamente sua invisibilidade, afirmada no discurso, reiteradamente repetido, de que "os negros só mexeram os tachos".

foto_1b.jpgA hipótese mais provável para essa invisibilidade se assenta nas próprias circunstâncias que situam Pelotas enquanto "região do doce" e não "região do açúcar", como na obra de Gilberto Freyre, referente ao Nordeste brasileiro. Tal caracterização indica o doce como um produto caro e restrito às camadas da sociedade que se beneficiavam das trocas de charque por açúcar. Desse modo, sua circulação não teria se dado entre as frações mais populares, aí inclusa a população negra pelotense. Assim, ao contrário do que se deu no Nordeste, onde as escravas e negras libertas vendiam os doces em seus tabuleiros, em Pelotas essas mulheres não tiveram acesso à rara matéria-prima dos doces finos.

Considerando, ainda, também sob a rubrica doce de Pelotas, a tradição dos doces de frutas, ou coloniais, vinculados à influência dos imigrantes franceses, alemães, pomeranos e italianos na produção de doces de passas e compotas de frutas, observa-se a mesma invisibilidade com relação à contribuição da etnia negra. Pensar que contribuições das diversas etnias compõem o mapa étnico da tradição dos doces de Pelotas significa, aqui, buscar analisar a dimensão das matrizes culturais que constituem, diversificam e atualizam essa tradição.

Já no depoimento de nossa primeira interlocutora, uma mãe-de-santo, novas perspectivas se apresentariam para a investigação.

foto_4b.jpgConta a lenda que uma escrava desejava muito engravidar e não conseguia, então prometeu a Oxum que lhe daria uma quantia de cem quindins caso tivesse um filho… Mas só sabe contar essa história o negro que é de religião (Ondina do Xangô)

A partir desse relato, o terreno das investigações transportou-se para o universo do povo de religião, esfera dos rituais e das crenças afro-brasileiras, dos pais-de-santo e suas numerosas famílias, circuito de sociabilidade pontuado, entre outros, pelos batuques das terreiras de Nação. Esse último termo é uma denominação utilizada pelos interlocutores deste estudo para se referirem ao Batuque, religião de culto aos orixás, praticada pelos africanos e seus descendentes, que se instalaram no Rio Grande do Sul como escravos. Neste conjunto de crenças e rituais, alimento e comida são elementos litúrgicos fundamentais, o que se afirma no dizer de que o "bom batuqueiro se faz na cozinha". Comer e alimentar são ações que mediam qualquer relação entre os orixás e os homens, o sagrado e o profano:

foto_9.jpga gente faz a comida para evocar o orixá, para botar ele a trabalhar para nós, para fazer um pedido para ele. Na igreja, as pessoas rezam, rezam, fazem uma oração. (Daniela da Oxum)

Buscando repertoriar os significados daquilo que representaria a comida e, mais especificamente, os doces, para o povo de religião, a observação de campo voltou-se aos rituais (cerimônias de iniciação, festas e demais ritos de obrigação religiosa). Foram também realizadas entrevistas semi-estruturadas com pais-de-santo e iniciados.

No batuque, a festa e os doces oferecidos aos orixás (e alguns também a humanos) ficam dispostos no quarto-de-santo, onde estão os alcutás, assentamentos dos orixás em pedras especificas de cada divindade. A pequena peça fica repleta de oferendas: flores, frutas e as frentes dos orixás. As frentes são as comidas prediletas de cada santo, bem cozidas e caprichosamente preparadas, oferecidas na frente de suas imagens. Elas fazem referência à intimidade, ao aconchego do lar, compondo o universo socialmente elaborado e permitindo a integração de coisas que estavam separadas. O axé materializado na comida está sempre presente no quarto-de-santo, mesmo quando não há festa: é a garantia de zelo constante dos orixás por seus filhos.

foto_5.jpgAlém das frentes, e em maior número, durante a festa há pudins, bolos, balas e, finalmente, alguns dos considerados doces tradicionais pelotenses: dentre outros, bandejas adornadas de ninhos, camafeus, bem-casados, cocadas, quindins, pêssegos e figos em calda.

Essas festas são abertas ao público, recebendo convidados de outros templos, com os quais a família-de-santo anfitriã compartilhará desde o salão e as rezas, as comidas e alguns dos doces dispostos nos aposentos dos orixás. São os batuques as noites de requintada sociabilidade do povo de religião, eventos que coroam toda uma rotina de devoção e culto constante aos deuses. Segundo Sylvio do Xangô, a elaboração do quarto-de-santo resume-se da seguinte forma:

foto_7.jpgNa verdade, o doce é para isso: a gente oferece para o orixá aquilo que a gente quer também na vida da gente, é harmonia, é paz, é tranqüilidade. Como a fruta é prosperidade, a flor. Então, fruta, flor e doce é isso: prosperidade, harmonia, tranqüilidade e fartura.

Todos os agrados, tudo o que se oferece, é oferecido no sentido de aproximar cada vez mais deus e devoto. E o elemento que faz essa ligação é a comida, cozida, feita dos melhores ingredientes, escolhidos com minúcia, picados delicadamente e dispostos da forma mais agradável possível aos olhos e ao paladar. A comensalidade vai unir homens, deuses e natureza. Conforme Sylvio do Xangô,

Na verdade, a festa que a gente faz para os orixás e oferece para o povo, é para os orixás compartilharem com a gente aquela fartura. O que fica para os orixás é o axé, aqueles doces que tu viste no quarto de santo são repartidos com o pessoal da casa. Tu comes a noite inteira.

A reciprocidade é um princípio sempre presente no discurso dos sacerdotes: tudo que se oferece representa o que se quer em retribuição. Os doces, junto com as frutas, nesse caso, ultrapassam o sentido do alimento enquanto fonte de energia: não se quer mais apenas a presença do deus, mas agradá-lo, acarinhá-lo.

foto_2.jpgOs doces estariam, então, em um patamar de civilidade ainda maior, porque "são um agrado a mais, são um presente". Os doces agregam em seu significado todas as características associadas à harmonia, à sociabilidade, ao prazer de estar junto e de comer junto. Transpõem o caráter natural porque respondem a acordos de comunhão e trocas: não só chamam ou evocam os deuses, mas os presenteiam. Por isso é que só oferece doce quem quer ganhar alegria, felicidade, carinho; só agrada quem quer ser agradado:

é que dá para dividir as frentes. Tem as frentes para festa e tem a comida. Quando tu estás só dando comida para o orixá, não tem doce. Agora, quando tu vais fazer uma frente de presente, uma bandeja de presente, tem doce. É um agrado. Tu enfeitas, botas tudo o que o orixá gosta. (José Carlos d’Oxalá)

Reforçando a especificidade das oferendas de comida, os batuques realizam uma diferenciação quanto ao que se dá aos deuses: *há a festa de quatro pés, quando há a obrigação de corte de animais de quatro patas, sendo oferecidas suas carnes (aí não se encontram doces no quarto-de-santo); *há o batuque dos peixes, quando são oferendas apenas as carnes desses animais de sangue frio; e por último, no dia de encerramento das obrigações, *há o batuque de terminação, também chamado de batuque dos doces. Além desses, há também a chamada quinzena dos doces, batuques realizados sem que tenham sido feitos cortes de animais.

foto_6.jpgQuando há toque de aniversário para algum orixá, ou quando se faz algum serviço, os doces também predominam entre as oferendas. Conforme Mãe Joana d’Oyá,

O quindim é para muita coisa, para dinheiro, para engravidar. É para a doçura do corpo… O doce de figo é para Ossanha…

O que é complementado pela observação de sua filha-de-santo, Daniela da Oxum:

em algumas casas fazem com compota. Se eu fosse fazer, faria com o figo cristalizado, aquele que vem com açúcar na volta. Porque o açúcar cristalizado é da Iansã, a mulher do movimento, e o figo é do Ossanha, que é o dono da erva e da caminhada.

As bandejas de doces finos que representavam o requinte dos saraus e banquetes na opulência de Pelotas carregam, ainda hoje, esse significado. Na cosmovisão batuqueira, esse significado de requinte que os doces – tanto de bandeja, quanto coloniais – assumem se repete. No entanto, de um modo que extrapola o uso da tradição doceira material na sociabilidade pública entre as famílias-de-santo, pontuando o caráter imaterial desse patrimônio, nas mais íntimas relações entre deuses e homens, a partir dos significados e valores que carregam termos como doçura e amargura nos rituais e cerimônias.

foto_10b.jpgAo analisar o uso dessa tradição nos batuques, além de declarar a importância dos doces na sociabilidade de Pelotas, percebemos a superação de fronteiras geográficas e temporais, desvendando as representações que o povo-de-santo faz, ao transportar para o campo do sagrado, quindins, camafeus, compotas, doces cristalizados, ninhos, bem casados – e tantos outros doces pelotenses -, contribuindo a partir de elaborações de fim litúrgicos para a perpetuação e atualização desse patrimônio cultural da cidade de Pelotas.

Ao mesmo tempo, a doçura dos quartos-de-santo, das oferendas e dos mercados (comidas que os visitantes dos batuques levam para casa, levam nelas o axé da casa) se conecta com as redes de doceiras do centro da cidade, ou com uma vizinha que aprende a fazer doces finos e passa a fornecê-los ao povo de religião, já que, mesmo que nenhum filho-de-santo conheça os segredos da doçaria pelotense, "todo reino tem uma doceira".

foto_11.jpgO apreço pelo doce como um elemento de integração, de refinamento, que envolve as ocasiões de comensalidade para os pelotenses, se revela no discurso dos religiosos, quando falam dos momentos sagrados em que compartilham comidas com seus deuses:

A gente aqui em Pelotas é que gosta de enfeitar com doce. Quem é que não gosta de ganhar uma bandeja de doces?… Coisa bem linda é uma bandeja com ninhos! (Joana d’Oyá)


* Marília Floôr Kosby  é mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e membro da Equipe do Inventário Nacional de Referências Culturais referente à produção de doces tradicionais pelotenses. Flávia Maria Silva Rieth , doutora em Antropologia Social e professora da UFPEL, é coordenadora dessa Equipe, que também é composta por: Fábio Vergara Cerqueira, Maria Letícia Mazucchi Ferreira, Francisca Ferreira Michelon (consultora em imagem), Mario Osorio Magalhães (consultor em história) e Tiago Lemões da Silva.


* Nota da Editora: A cada ano, realiza-se, em Pelotas, a Feira Nacional do Doce (FENADOCE). Em 2008, a Festa acontece de 4 a 22 de junho: vale a pena conferir.

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